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Paulo Ferreira-Lopes


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Questionário/ Entrevista

· No decorrer do seu percurso quando percebeu que dedicaria a sua atividade criativa e artística à composição? ·

Paulo Ferreira-Lopes: A decisão de me dedicar a tempo inteiro e profissionalmente à música, de facto nunca ocorreu. Eu nasci numa família muito simples sem grandes possibilidades financeiras. Não obstante uma infância feliz, bem estruturada, e com acesso a uma grande diversidade de actividades culturais e particularmente musicais, muito cedo tanto eu como a minha irmã começámos a trabalhar com o intuito de poder minimizar as dificuldades que se viviam nessa época. Este contexto familiar e social nunca criaria qualquer espécie de ambição a uma profissão como músico ou artista. As discussões sobre o meu futuro profissional eram sempre focadas no futuro próximo onde o destino – imediatamente a seguir à escola primária – seria a escola industrial para aprender uma profissão. A revolução de 25 de Abril, contribui muito rapidamente, entre outras coisas, para um melhoramento substancial da situação financeira da minha família, mas também para uma abertura para uma vida social mais activa e para uma vida cultural muito forte. Por essa altura, como na descrevi na entrevista anterior, a música entrou no meu universo e na minha de vida de formas diferentes, mas sempre sem uma consciência própria e individual do que é que de facto seria a música, se haveria boa ou má música. De forma geral havia música e foi esse fenómeno que me abraçou como uma onda na qual fui levado sem vontade própria. No final do liceu e paralelamente ao curso de Música na Academia dos Amadores de Música de Lisboa e depois no Conservatório de Lisboa, iniciei o curso de Arquitectura na ESBAP. Esta terá sido a primeira tentativa de não decidir o que mais quereria fazer. Durante o curso de Arquitectura (já num período avançado) decidi concorrer ao curso de composição da ESML. Ao entrar para o curso de Composição, senti que porventura neste novo contexto poderia comprometer-me mais com a música e com a composição, mas mesmo assim, nunca tive a coragem de romper com o passado ou com aquilo que a minha família aspirava para o meu futuro – a possibilidade de ter uma profissão mais segura do ponto de vista financeiro. Nesse momento, embora muito me dedicasse, e com enorme paixão, aos estudos de composição na ESML eu próprio continuava a negar a mim mesmo a possibilidade de poder vir a ser músico profissional. O tempo de estudos em Lisboa foi fulgurante, mas devido à rejeição (musical, intelectual, pessoal) de muitas das pessoas que me acompanhavam na ESML, uma vez mais, já no final do curso, adiei essa decisão. Em 1993, finalizado o curso de Composição, o clima hostil de Lisboa e particularmente na ESML levou-me a sair de Portugal, sem decidir de forma consciente se de facto iria ou não ser compositor; amargurado com tudo o que me rodeava só conseguia ouvir em eco constante o poema de José Régio: «não sei por onde vou, mas sei que não vou por ali» 1. Este foi, de alguma forma, o impulso que me levou até outros lugares e pessoas que de forma lenta e pausada me guiaram até ao rumo que fui seguindo e onde actualmente navego, obviamente com uma enorme felicidade e esperança.

· O seu caminho percorre de acordo com um plano, por exemplo sabe que daqui a «x» anos vai cumprir os objetivos «y»? Ou acha que a realidade é demasiado caótica para poder criar tais determinações? ·

PFL: Eu vejo o meu percurso como um o curso de um rio, sulcando vales e planícies sem uma antevisão do que está por detrás da próxima curva. Este caminho, à semelhança de um rio é animado por vezes por uma enorme actividade e movimento, tal como as águas, correndo muitas vezes com brutalidade ou por vezes estagnando à espera da próxima estação de chuvas para encher de novo com vida e movimento o processo de criação e de realização dos projetos. Paralelemente, e por vezes, eu próprio preciso de criar uma certa inércia, pela necessidade de frenar o movimento brutal que a composição na maior parte dos meus projectos implica. A realidade não é de forma nenhuma caótica e eu também não sou um estratega implacável com um plano rigoroso a seguir, porque a vida representa para mim um momento único onde o esforço não tem de ser, nem é, o planificar uma carreira ou a glorificação do meu próprio trabalho. O que mais me motiva na música e na sua criação é o dar vida a objectos, o florir constante e a partilha das ideias e das obras com os outros. A graça ou a força que me anima é mais focada na interacção com os que me estão próximos do que com um mundo meramente imaginário de pessoas e lugares desconhecidos. A criação musical existe na minha vida como uma forma de intensificar essa força que vem de algum lado, e que se destina a criar música para partilhar com os outros, que nunca poderia usar como uma alavanca ou força para delinear uma carreira.

· Quais são as suas preocupações artísticas/ criativas principais no tempo presente? ·

PFL: Se encararmos a arte como uma forma de conhecimento, o cerne do meu pensamento artístico é essencialmente focado na ética como tema dominante das relações entre pessoas no contexto colectivo ou social. A obra de arte não é uma mera representação ou demonstração de uma determinada cultura. A arte não demonstra nada. A arte, tal como a ciência, guia comportamentos e encontra-se sempre muito além da percepção contemporânea das realidades elementares, justamente para poder inspirar e guiar comportamentos, escolhas, processos, estruturas, etc... Todavia as minhas preocupações artísticas ou as preocupações com as questões de ética que a arte desencadeia, nem sempre coincidem com as preocupações criativas porque, no meu caso, as preocupações criativas são maioritariamente focadas no objecto, na forma de o conceber e particularmente na artesania que envolve a complexidade da realização da obra: desde as ferramentas e a sua adaptação à "fundição" dos elementos musicais, até aos processos de percepção, que após a construção da obra, irão desencadear no público.
Não obstante o meu pensamento artístico conter em si uma reflexão pessoal sobre o significado ou sobre o impacto da obra musical, tendencialmente dedico muito mais tempo e de forma mais intensa às questões da criatividade – não tanto à originalidade – sobre a relação entre materiais muitas vezes disruptivos ou distantes, sobre estruturas e formas de manipular/gerar materiais, sobre a percepção intrínseca, mas também a percepção invisível que o trabalho com o som permite e implica.

· Em que medida a circulação entre os universos, acústico e eletroacústico, tem vindo a enriquecer a criação musical das últimas décadas? Existe na sua música uma influência mútua entre estas duas práticas? ·

PFL: A primeira parte da questão é muito complexa e eu não consigo efectivamente reduzir a questão fundamental a uma relação simbiótica: acústico e eletroacústico e enriquecimento da criatividade musical. A relação entre estes dois paradigmas tecnológicos – mecânico e eléctrico – são tão distantes como próximos. Eu penso que a reflexão inicial começa de facto com a questão da percepção sonora e com o «cisma» futurista sobre a redefinição da estética do som, mas também sobre a definição de percepção acústica. A questão é extensa e muito embora eu ensine principalmente design aplicado ao som e composição, devido à complexidade do tema, há cerca de 8 anos decidi introduzir no curriculum de um dos mestrados onde ensino, o tratamento e a discussão de alguns dos aspectos desta questão, apoiando-me particularmente em temas da psicoacústica, da estética futurista, da música concreta e da música electrónica, para tentar conjuntamente com os alunos desvelar alguns dos mitos ou falsas questões tradicionalmente levantados pela musicologia histórica.
No que concerne a relação entre a minha forma de pensar e a música que faço, esta é praticamente indissociável, tanto das ferramentas digitais enquanto objectos de reflexão e conceptualização sonoros – particularmente através do uso paradigmas geométricos e matemáticos – mas também na realização e performance musical onde uso abundantemente instrumentos digitais e sistemas de tratamento interactivos do sinal áudio. Dito isto parece-me clara a minha posição relativamente ao tema e a sua extensa complexidade.

· Como poderia descrever o timbre da sua música? Acha que é possível encontrar nele os seus interesses musicais da juventude? ·

PFL: O timbre da minha música é difícil de explicar enquanto marca ou símbolo, porque a abordagem sonora dos meus projectos é extremamente diversificada na medida em que uso materiais e formas de geração de materiais muitos heterógenos. Todavia e simultaneamente, o timbre é sem dúvida a maior marca da minha música, ou pelo menos o eixo gravitacional em torno do qual todos os restantes elementos e parâmetros giram. De forma geral a reflexão mais aprofundada e o tema que mais me interessa na realização dos materiais musicais que, depois de explorados, utilizo nas minhas peças e na base da retórica ou do discurso que procuro criar no desenvolvimento temporal das obras, prende-se com a questão da harmonia. A inevitabilidade da harmonia na construção musical é algo de paradigmático e ao mesmo tempo de incontornável. De forma geral na música baseada em instrumentos tradicionais ou acústicos, mesmo na música para instrumentos solo ou na monodia, o compósito ou o agregado espectral de todos os componentes acústicos do som gerado por estes instrumentos transporta sempre, mesmo que quase indelével ou invisível, um conteúdo harmónico, que por sua vez caracteriza, em primeira linha, o material acústico. Esta relação e interacção incontornáveis entre cada componente do espectro acústico, geram de forma irreversível uma dinâmica entre o espaço arquitetónico e a mecânica do som que permite de forma mais ou menos evidente reforçar ou filtrar as repercussões que um determinado espectro reproduz num determinado espaço. Ao longo de mais de 1000 anos escutámos e criámos música sempre fundados numa premissa comum e num modelo acústico extremamente complexo que por sua vez se repercutiu na técnica de construção dos instrumentos nas técnicas da composição – particularmente na harmonia – e de forma indirecta na concepção do espaço do concerto e de audição musical.
Mesmo com Schönberg e a introdução da harmonia não funcional (atonalidade) e a rejeição da hierarquia dos diferentes graus da escala diatónica ou dos graus harmónicos, a natureza harmónica do espectro dos instrumentos tradicionais continua a dominar com características em todas iguais às características tímbricas da música do seculo XIX e em parte do final do seculo XVIII. Só através da introdução massiva dos instrumentos de percussão – com uma natureza espectral completamente diferente do modelo espectral dos instrumentos de corda ou de sopro – é possível conquistar universos tímbricos até então inexistentes na música ocidental. Partindo desta premissa e só muito tarde me comecei a interessar pela possibilidade de criar universos sonoros baseados no uso de instrumentos tradicionais, de alguma forma inovadores relativamente ao timbre. Entre a constatação e a insatisfação das limitações que os usos dos instrumentos tradicionais colocavam à música que eu escrevia e o encontrar um caminho que me permitisse alargar o universo sonoro e as combinações tímbricas dos instrumentos tradicionais, que eu de facto desejava imprimir na minha música, demorou muitos anos e conduzindo-me a reflexões extensas e profundas. O quinteto que escrevi em 2011, “A menina dos fósforos”, revela já algumas das soluções resultantes de vários anos de pesquisa em torno da tentativa de criar inharmonicidade na relação entre os instrumentos ou pelo menos que criar uma ruptura do ponto de vista espectral entre cada som ou instância sonora do conjunto instrumental. Na obra “Purity 1” (2014) consegui aprofundar definitivamente este sistema de forma a criar uma disrupção harmónica ou disrupção espectral continua na interação do conjunto instrumental e da electrónica. Em suma, os interesses musicais que eu tinha na juventude eram definitivamente diferentes dos meus interesses actuais. Por um lado, porque a visão que eu tinha do mundo e da vida era substancialmente diferente e muito mais ingénua e por outro lado porque a minha cultura tanto musical como artística era muito reduzida e focada essencialmente no contexto social da minha vila e do meu círculo de amigos e pessoas conhecidas. O espírito e as motivações que me impeliam e me aproximavam da música eram também diferentes das minhas motivações actuais. O mundo do pós-25 de Abril, altura em que comecei a aprender o meu primeiro instrumento e a contactar de forma quase diária com a música, era um mundo com esperança e aberto a recomeçar tudo de novo. A vida social e a contextualização da arte nesse tempo era também, na minha percepção extremamente inocente, desprovida de relações complexas. A realização da obra de arte, refiro-me às minhas primeiras composições, emergiam de uma necessidade de me expressar de forma mais imediata e menos intemporal. O trabalho e a vida das populações, na minha juventude eram bastante árduos e logo com menos tempo e afinidade para a reflexão, e a música que eu podia fazer era bastante mais ingénua e com um caracter muito mais funcional do que a música que faço hoje.

· Na entrevista que deu ao MIC.PT em setembro de 2014, em resposta à pergunta, «Como carateriza a sua linguagem musical?», disse: «Não tenho uma linguagem musical própria porque acho que ainda não atingi uma maturidade suficiente que permita, por um lado, sentir que tenho uma linguagem e, por outro lado, não sinto necessidade de definir ou encontrar a minha própria linguagem.»2 Passados quase 10 anos, como presentemente responde à mesma pergunta? ·

PFL: Dez anos depois continuo sem perspectivar a necessidade de me debruçar sobre a definição de uma linguagem pessoal. A minha actividade de criação é acima de tudo conduzida por um caminho que se vai construindo por encontros e desencontros onde os intérpretes têm tido um peso enorme no desenvolvimento da minha «maturidade» musical. Este caminho e o trabalho com outros músicos permitiu-me também alcançar uma abertura para a exploração de pequenos nichos que à priori seriam difíceis de explorar se eu me concentrasse unicamente ou maioritariamente na consolidação de uma linguagem e numa perspectiva de definição de coerência musical da minha música. A minha criação orienta-se pelas possibilidades de exploração e de desenvolvimento de elementos sonoros ou musicais, que alguns músicos se predispõem a trabalhar comigo e vice-versa, numa tentativa de ampliação das possibilidades e do horizonte que o ponto de partida de um projeto ou de uma nova peça me mostra – seguindo um pouco o pensamento de Francis Dhomont, muitas vezes na busca de uma determinada realidade ou contexto sonoro acabo por deslizar para outros resultados ou contextos que nem sequer havia imaginado no inico do processo – síndroma de Colombo. Naturalmente que no processo de composição e de reflexão sobre a minha música, existem aspectos estilísticos e técnicos que eu próprio defino com uma consciência profunda, como linhas orientadoras da música que desejo realizar e do universo sonoro que imagino e que sistematicamente procuro inventar. Estes elementos não conduzem nem ambicionam, todavia, definir uma linguagem. A minha forma de aprofundar o meu conhecimento musical é normalmente acompanhada não só da minha experimentação – com materiais sonoros e musicais, com intérpretes e técnicas pessoais que cada intérprete ou músico desenvolve – mas também do uso, leituras e visitas as obras de compositores diversos (Beethoven, Brahms, Berlioz, Bach, Berio, etc.) onde verifico que a linguagem é sistematicamente alterada e até mesmo rejeitada, de uma fase para outra, sendo a dimensão acústica e sonora da obra que define o pensamento musical da obra ou do conjunto de obras relativas a uma ou outra fase de produção. Um exemplo que eu me descrevo a mim próprio, não tanto como uma análise de uma linguagem mas mais como abordagem técnica, é Beethoven, onde a linguagem (ou pelo menos a retórica musical) entra por vezes em ruptura nas suas diferentes fases de produção musical; quem poderia imaginar que a retórica musical das Sonatas op. 7 e op. 53 poderia radicalmente contrastar com as Sonatas op. 101 ou op. 111? Ou ainda a retorica musical de “A-Ronne” com “Cries of London” (Berio)?

· Em que sentido a invenção e a pesquisa constituem para si elementos indissociáveis da criação musical e, em geral, da arte? ·

PFL: A criação artística é uma actividade rodeada por técnica, por experimentação e desenvolvimento de técnicas, mas também por tecnologia (mecânica, elétrica, digital, etc.). O público em geral e até mesmo o crítico discutem infinitamente a inspiração do artista e a transcendência da ideia singular e da genesis da ideia, esquecendo ou ignorando que uma construção, pouco importa se sonora, visual, geométrica ou mecânica, é fruto da combinação de conhecimentos por vezes desconexos, e sobretudo de uma técnica exemplar que controla todos os detalhes da construção.
É obvio que existem seres humanos que inexplicavelmente correm mais depressa do que outos ou seres humanos que ouvem mais detalhadamente do que outros e isso é o que eu descrevo como o encontro feliz entre o querer fazer e o conseguir fazer. Quando a capacidade de conseguir fazer algo (tocar um instrumento) encontra o objecto exacto que permite expressar e desenvolver essa capacidade de fazer (o instrumento certo), o momento que se segue é o de aprofundar minuciosamente, até quase ao infinito, a forma como se faz – no caso dos instrumentistas – a técnica instrumental. Este processo de aprofundamento das competências musicais e a evolução da técnica instrumental, da micromecânica, da capacidade auditiva, tem muito pouco a ver com inspiração ou meramente com habilidade. Este processo é um processo que requer muitas horas, semanas meses e anos de trabalho intenso, de planificação, de autocritica e de visão relativamente aos resultados que desejamos alcançar. A composição à semelhança da técnica instrumental, requer um trabalho de muitos anos de prática e de desenvolvimento de diferentes técnicas, de treino auditivo, de desenvolvimento da capacidade analítica e sobretudo de uma autocrítica intransigente. Todo o processo de evolução do músico é um processo baseado nas possibilidades que a tecnologia oferece, mas também no interesse de contribuir para o desenvolvimento das tecnologias através da observação minuciosa do aparato e da técnica que rodeia os instrumentos musicais, a acústica, a arquitectura etc. A criação de forma geral não se limita a conceptualizar ou idealizar paradigmas. A criação tem uma ligação directa com as ferramentas e com as tecnologias que usamos para materializar conceitos. A observação e a reflexão simultânea sobre as fronteiras que limitam uma determinada técnica ou tecnologia ajudam, por um lado, a compreender os limites da realidade acústica e por outro lado a encontrar as lacunas que possibilitem criar paradigmas ou alargar os limites aparentes da técnica. Numa perspectiva fenomenológica a tecnologia tem um papel não só de suporte, mas também um papel de inspiração onde procuro encontrar espaço para descobrir novos horizontes e deixar-me também de alguma forma surpreender-me por realidades e paradigmas que não poderia sequer imaginar sem a tecnologia.

· Selecione e destaque três obras do seu catálogo e justifique a sua escolha. ·

PFL: “Die Sieben Worte Jesu Christi am Kreuz”(2020)
Uma peça de música sacra, que me obrigou a uma reflexão sobre a relação entre a narrativa da palavra e o efeito oposto (inexistência de narrativa) no âmbito instrumental.

“A Menina dos Fósforos” (2011)
Primeira peça do período/ciclo em que me encontro a trabalhar actualmente. A preparação e realização desta peça, corresponde a um longo período reflexão e de redefinição da minha música.

“Sotto Voce” (2002)
Peça que me permitiu fazer a maior evolução na relação entre a eletrónica em tempo real e instrumentos tradicionais.

· Poderia revelar em que está a trabalhar neste momento e quais são os seus projetos artísticos planeados para 2024, 2025, 2026, ...? ·

PFL: Actualmente encontro-me a trabalhar numa peça de música sacra – uma oratória – com textos de um poeta e escritor contemporâneo português. Para 2025 existem dois projectos, um para instrumento solista e ensemble (resultado de uma residência no ZKM em 2017) e o segundo projecto, em fase de definição, para dança, imagem generativa e música generativa.

· Em termos estéticos e técnicos, a história da música de arte ocidental está cheia de nascimentos, ruturas, mortes, renascimentos, continuações, descontinuações, outras ruturas e por aí fora... Num exercício de «futurologia», poderia desenhar o futuro da música de arte ocidental? ·

PFL: Parafraseando André Malraux, mas com uma certa interpretação pessoal, considero que enquanto houver passado, no sentido da memória, haverá sempre lugar para inspiração de um futuro, todavia, a forma como o futuro se expande depende das condições que os criadores encontram para essa mesma evolução e para o seu crescimento pessoal enquanto parte fundamental do processo de criação e do desenvolvimento de um pensamento.
Os criadores, por natureza são seres fortes e persistentes, por isso constroem pensamento e empreendem e edificam obras de arte magnificas e de uma complexidade inimaginável. Mas esse empreendedorismo esgota-se nas suas obras porque é justamente na obra e no pensamento que o criador pode investir a sua força e o seu tempo de existência.
A criação, particularmente a criação nas artes performativas, depende de muitos factores, sendo que a essência da arte musical reside particularmente na criação das obras por intérpretes e para o público. A obra acabada, destina-se a ser executada permitido assim ao público fruir da obra e da criatividade do compositor. Cada obra que os compositores compõem é um passo para a sua própria aprendizagem e também o caminho para encontrar as suas rupturas ou continuidades, bem como aperfeiçoar as suas técnicas musicais e seu pensamento. Este processo é o processo que permite ao compositor tocar o seu próprio futuro e quase, como se de um espelho se tratasse, permite ao compositor rever-se simultaneamente no passado (na obra acabada e executada) e na nova obra que nasce da aprendizagem da realidade musical da obra acabada. Esta cadeia, desde o nascimento da obra até à sua execução pública, se possível, por diferentes intérpretes e escutada por diferentes públicos, é uma cadeia que não pode ser assumida pelo compositor porque o processo de produção e de realização da obra – estúdio de gravação, laboratório de música, concerto – é dispendioso e tem uma natureza institucional, e é justamente nas diferentes fases desta cadeia, que por vezes as instituições, num acto que eu designaria por suicido da sua missão, comprometem o futuro da arte por privilegiarem uma programação e produção sem riscos. Isto significa que o futuro da música de arte não depende unicamente da visão singular dos criadores. O futuro depende do compromisso que as instituições encontrem entre a sua missão, sistematicamente ignorada, de criação de património e conhecimento artístico e a eliminação de clientelas, estabelecida indiscriminadamente pelo gosto de quem programa e gere os processos de produção artísticos. A situação é de tal forma descontrolada que não me parece existir a mínima possibilidade de salvar o pouco que poderia restar às instituições mandatadas para a missão que elas próprias esqueceram pelos mandatos infinitos de direcções e directores vitalícios. A vida e a morte da música contemporânea e da criação musical não está, portanto, nas mãos de quem cria música, e com uma enorme coragem decidiu profissionalmente abraçar a arte, o conhecimento e a criação, a vida e a morte bem como o futuro da música, estão nas mãos das instituições que ignoram a sua missão.

Paulo Ferreira-Lopes, abril de 2024
© MIC.PT
O autor não aplica o Acordo Ortográfico de 1990.

NOTAS DE RODAPÉ

1 Fragmento de “Cântico Negro” (1926) de José Régio.
2 Entrevista a Paulo Ferreira-Lopes conduzida pelo MIC.PT em setembro de 2014 e disponível em: LIGAÇÃO.


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MUSIVUS – ciclo IV – sessão I [Paulo Ferreira-Lopes e Henrique Portovedo]
O Projecto MUSIVUS é uma iniciativa da APC – Associação Portuguesa de Compositores. A primeira sessão do Ciclo IV, aconteceu no dia 15 de outubro de 2021 e contou com a presença do compositor Paulo Ferreira-Lopes que esteve à conversa com o saxofonista Henrique Portovedo, tomando “Três Peças do Livro da Escuridão”, como ponto de partida para a conversa.
  Paulo Ferreira-Lopes · Die Sieben Worte Jesu Christi am Kreuz (2020)
Sond’Ar-te Electric Ensemble, Pedro Neves (direção musical)
Gravação: Festival Música Viva 2022, 18 de novembro de 2022, O’culto da Ajuda em Lisboa
 
· Paulo Ferreira-Lopes · “diálogos...e...dos dias de Luz” (1990) · Luís Miguel Leite (guitarra) · CD: “Música Contemporânea Portuguesa para Guitarra – José Teixeira/ Luís Miguel Leite” [edição de autor] ·
· Paulo Ferreira-Lopes · “Três peças do livro da escuridão” (2007) · Pedro Bittencourt (saxofone barítono), Paulo Ferreira-Lopes (eletrónica) · gravação dos autores ·
· Paulo Ferreira-Lopes · “Attaca (brilhante)” (2010) · Pedro Neves (maestro), Sond’Ar-te Electric Ensemble · CD: “CADAVRES EXQUIS Portuguese composers of the 21st century” [Miso Records] ·
· Paulo Ferreira-Lopes · “7 Canções Breves do Livro do Esquecimento” (2010) · Quarteto de Cordas de Matosinhos · CD: “Quarteto de Cordas de Matosinhos” [Numérica] ·
· Paulo Ferreira-Lopes · “Putiry 1” (2014) · Pedro Neves (maestro), Sond’Ar-te Electric Ensemble · CD: “Sond'Ar-te Electric Ensemble · Portuguese Chamber Music of the XXI – Vol. IV” [Miso Records] ·
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