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Pedro Amaral


Foto: Pedro Amaral · © Marcelo Albuquerque

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Questionário/ Entrevista

Parte 1 · raízes e educação

· Como começou para si a música e onde identifica as suas raízes musicais? ·

Pedro Amaral: A música está ligada à minha história familiar. Na minha infância, a minha mãe comprou um piano e, já em adulta, começou a ter aulas particulares. A minha aprendizagem iniciou-se pelos oito anos de idade, mas os meus pais tinham uma grande paixão pela música e eu tive a sorte de ouvir excelente música desde o berço. Desde o começo da minha aprendizagem do instrumento quis imediatamente começar a compor, por imitação, peças na mesma linha daquelas que me eram ensinadas. Três anos mais tarde fui para um colégio militar, estudei saxofone e participei na orquestra académica. Aos quatorze compreendi de uma forma quase fulgurante que a minha vida iria ser dedicada à música e, em particular, à composição. Ainda no colégio, comecei a frequentar a Academia de Amadores de Música, que era a única instituição que permitia concentrar as várias disciplinas nas tardes de quarta-feira, o único dia em que nos era permitido sair do colégio, durante a semana. Um ano mais tarde passei para o ensino público de modo a poder estudar música mais sistematicamente. Conheci Fernando Lopes Graça1, que me acolheu como aluno privado, frequentei o Instituto Gregoriano de Lisboa, uma escola excelente na qual tive uma aprendizagem muito completa e, após o 12.º ano, entrei na Escola Superior de Música de Lisboa onde completei o Bacharelato em Composição antes de ingressar no Conservatório de Paris (CNSM).

· Que momentos da sua educação musical se revelam, hoje em dia, de maior importância para si? ·

PA: Todos eles, creio eu. Aproveitei bem os anos de aprendizagem, absorvi o mais possível, nas componentes práticas como nas matérias teóricas. Três compositores marcaram a minha formação em momentos diferentes: Fernando Lopes Graça, Christopher Bochmann e Emmanuel Nunes. Eu estava ainda numa fase muito inicial quando conheci o Graça, tinha 15 anos e ainda pouco sabia de teoria musical, de harmonia e de contraponto. Mas escrevia bastante, apesar das minhas limitações, e o Graça tinha uma grande generosidade e uma grande paciência para me corrigir a escrita, para me fazer compreender a forma, para me guiar naqueles primeiros passos. Com Christopher Bochmann conheci um ensino mais sistemático e de grande rigor. Foi com ele que adquiri a base técnica sólida que ainda hoje me acompanha. Com Emmanuel Nunes, no Conservatório de Paris, praticamente não havia transmissão técnica: as suas aulas planavam num horizonte mais abrangente, algures entre a filosofia e a psicanálise. A pergunta fundamental do seu ensino era: «a que corresponde em ti aquilo que escreves?». Esta necessidade de uma grande autoconsciência do ato criativo marcou-me muito, evidentemente; mas só funcionou porque eu já levava comigo uma sólida bagagem técnica. No plano da direção de orquestra marcou-me o ensino de dois grandes músicos: Peter Eötvös e Emilio Pomàrico, duas personalidades muito diferentes, duas técnicas também elas muito diferentes, ambas determinantes na minha formação. Uma terceira figura, de resto anterior, é a de Pierre Boulez. Nunca estudei diretamente com ele, mas assisti a muitos dos seus ensaios e concertos, com diversos repertórios; e a sua abordagem, a sua técnica de ensaio, o seu gesto, marcaram-me profundamente.

Parte 2 · influências e estética

· Que referências do passado e da atualidade assume na sua prática musical? ·

PA: A genealogia com a qual me identifico, como compositor, é a que parte da Itália barroca do início do XVII; que, ainda no primeiro quartel do século migra para terras germânicas, através da figura de Schütz, e que, um século mais tarde, terá uma primeira apoteose na obra de J. S. Bach; seguem-se as vias sinuosas que, no terceiro quartel do XVIII, levam, progressivamente, ao estabelecimento do Classicismo Vienense, depois ao Romantismo Germânico que, partindo de Beethoven e Schubert, conhecerá como auge a obra lírica de Wagner e as obras sinfónicas de Bruckner e de Mahler; vem depois a agonia da tonalidade, com Schönberg, e a reconstrução de uma linguagem possível pela Segunda Escola de Viena, por um lado, e, por outro, as obras incontornáveis de Stravinsky e Bartók, Debussy e Ravel que, no seu conjunto, iriam levar à grande síntese do Serialismo no pós-Segunda Guerra Mundial, com as figuras mestras de Boulez, Stockhausen, Berio, Nono, Ligeti, mas também Bernd Alois Zimmermann. Estudei a fundo a obra destes compositores; na minha formação, trabalhei diretamente com dois dos seus mais brilhantes herdeiros, Emmanuel Nunes e Peter Eötvös, e sou um profundo admirador da obra de Wolfgang Rihm. Creio que a minha música é devedora desta ampla genealogia.

· Existem fontes extramusicais que de uma maneira significante influenciem o seu trabalho? ·

PA: Eu creio que um artista é influenciado por toda a sua experiência, pelo que vê, lê e ouve, pelas suas relações humanas e profissionais, pela sociedade no seu conjunto. Desta envolvência destilamos certamente aspetos que mais diretamente nos influenciam, no nosso trabalho como na nossa mundivisão. No plano artístico, extramusical, poderia citar a obra de Proust, com cuja narratividade e construção me identifico particularmente; a filmografia de Bergman, sobretudo a partir de “Sorrisos de uma Noite de Verão”, mas também a de Fellini; o teatro de Beaumarchais e de Anton Tchekhov, todo ele; a pintura de Vermeer, de Miró, de Viera da Silva e, num outro plano, a linhas formais de Renzo Piano e de Frank Gehry. Mas a lista é interminável e começa oitocentos anos antes de Cristo com a obra de Homero, atravessando depois as dos grandes trágicos gregos, Ésquilo, Sófocles e Eurípedes, cujas extraordinárias construções dramáticas constituem, ainda hoje, modelos artísticos e civilizacionais incontornáveis. Pessoa é talvez menos uma influência que uma presença permanente ao longo da minha vida, como creio que é patente nas minhas obras “Os Jogadores de Xadrez” (2004), “O Sonho” (2010) e “Deux portraits imaginaires” (2012).

· O que entende por «vanguarda» e o que, na sua opinião, hoje em dia pode ser considerado como vanguardista? ·

PA: A palavra «vanguarda» está associada ao vocabulário marcial – «vanguarda» é a primeira linha de um exército em ordem de batalha – e não é surpreendente que tenha emergido por associação à música do pós-Guerra, numa época em que a catástrofe bélica estava ainda muito viva no imaginário coletivo. Boulez ironiza com o termo, na introdução a “Penser la musique aujourd’hui” – («Quelle débauche de métaphores militaires!») e não tenho a certeza de que, hoje em dia, faça algum sentido continuar a usá-lo. Nós vivemos uma época muito particular e um tanto contraditória na medida em que, por um lado, temos uma presença excessiva da memória histórica, que facilmente prende o público e os auditórios às obras, aos compositores e às linguagens musicais do passado; e, por outro lado, dispomos de tecnologias e meios absolutamente novos e profundamente característicos do nosso tempo. A esmagadora maioria da música que ouvimos no dia a dia, incluindo no cinema e nos media, assenta numa linguagem que a música erudita ultrapassou há mais de um século; no entanto, esta banda sonora quotidiana, que o público reconhece como sua, utiliza meios instrumentais e tecnológicos contemporâneos, muitíssimo avançados em relação a essa linguagem. Esta contradição estética, que é uma das características do nosso tempo, é menor ou mesmo inexistente em grande parte dos compositores eruditos atuais, o que significa que as suas obras, que não participam desta contradição, pouco participam da realidade social envolvente. Na Europa, a «vanguarda», se a palavra ainda fizer algum sentido, não é, hoje, de um exército que represente um povo ou um país, mas de um punhado de artistas que dialogam entre si e de uma ínfima parte da sociedade que os conhece. O Minimalismo norte-americano procurou responder a esta dificuldade com uma simplificação radical da linguagem. E pode dizer-se que resultou: Steve Reich, Philip Glass, e John Adams são dos compositores vivos de maior sucesso no plano mundial. Não creio, no entanto, que esta resposta seja intimamente possível para um músico da tradição europeia. Há, aliás, uma história curiosa, quase anedótica e um tanto trágica, em torno da ópera “Jonny spielt auf”, de Ernst Křenek, uma obra que opõe sonoridades e ritmos de Jazz a uma linguagem erudita «moderna», em 1926. Křenek tinha um propósito concreto: desejava demonstrar a superioridade moral e estética da «grande arte» europeia por comparação com a música ligeira e superficial do Novo Mundo. Para estupefação do compositor, o enorme sucesso da obra deveu-se exclusivamente à presença das sonoridades de Jazz e à música de entretenimento que atravessa algumas secções. É um caso extraordinário em que o sucesso da obra contradiz dramaticamente as intenções do seu autor. No sentido inverso ao dos minimalistas norte-americanos, os compositores europeus das últimas décadas têm alargado os seus meios e tornado ainda mais complexa a sua morfologia musical: a obra de Helmut Lachenmann, que outrora suscitava um interesse muito limitado, é hoje um paradigma vivo para as novas gerações europeias que não hesitam em integrar na sua linguagem as sonoridades da chamada «música concreta instrumental»; da mesma forma, o uso da microtonalidade tem-se generalizado, alargando o secular temperamento de 12 tons por oitava. Pessoalmente, não tenho abundado nesta expansão da morfologia, apesar do interesse estético que me suscita. Verifico que uma maior complexidade neste plano implica, muitas vezes, uma grande simplicidade retórica; pelo contrário, uma construção formal mais ambiciosa, uma «narratividade» mais rica e elaborada parece-me mais praticável partindo de um vocabulário instrumental que eu possa dominar inteiramente. A minha linguagem é devedora da grande síntese do serialismo, embora eu não tenha jamais composto com séries, e do estruturalismo em geral; não integro na minha música fragmentos de linguagens passadas, segundo a tendência pós-moderna; também não adiro à generalização de uma arte conceptual em música que, francamente, me interessa pouco. A minha linguagem tem-se tornado mais pessoal, com o passar dos anos, e procuro dimensões próprias e sonoridades que não encontro em outros compositores. Significa isto que estou na vanguarda? Que me afastei dela? – Não me cabe avaliá-lo e, francamente, como Boulez me disse um dia, não vale a pena perdermos tempo com tais reflexões: um dia morremos e um musicólogo virá interpretar a posição da nossa obra na história.

Parte 3 · linguagem e prática musical

· Há algum género/ estilo musical pelo qual demonstre preferência? ·

PA: Há, de facto, dois géneros que me atraem particularmente: a ópera e a música orquestral. A primeira tem origem numa paixão que me acompanha desde a infância: o teatro. Compor as minhas duas óperas, “O Sonho” (2010) e, mais tarde, “Beaumarchais” (2016), correspondeu a uma união natural e harmoniosa entre o músico que sou e esta paixão de sempre com os textos dramáticos, com os atores, com a encenação, com o palco. Escrever uma ópera é, desde logo, encenar musicalmente um determinado texto: dar-lhe uma dramaturgia tangível através da voz e do tecido instrumental. Um compositor de ópera é, a seu modo, um homem de teatro – e se alguma hesitação houve na minha adolescência entre as duas vias possíveis, a música dramática permitiu-me unir ambas num fluxo criativo comum. O outro género, a música orquestral, decorre talvez do meu trabalho de intérprete. Cada músico tem o seu instrumento, e o meu instrumento é a orquestra: é através dela que melhor me exprimo; e da mesma forma que, como intérprete, sei construir uma sonoridade, um fraseado, desenhar um arco formal na obra de outro compositor, antigo ou contemporâneo, da mesma forma, ao escrever para orquestra, imprimo na composição essa experiência interpretativa, construo a minha sonoridade, o meu fraseado, a minha gestão da forma e do fluxo narrativo tendo sempre presente a realidade instrumental. Na composição há, certamente, muitas dimensões puramente abstratas; mas ao escrever para orquestra – ao orquestrar – há, para mim, uma dimensão concreta imediata. Como se ao escrever tocasse, mentalmente, o instrumento – a orquestra.

· No que diz respeito à sua prática criativa, desenvolve a sua música a partir de uma ideia-embrião ou depois de ter elaborado uma forma global? Por outras palavras, parte da micro para a macro forma ou vice-versa? Como decorre este processo? ·

PA: Parto de um plano, naturalmente: uma obra de arte não é um devaneio ou uma improvisação. Ao longo da história, os compositores partiram sempre de um plano – chame-se fuga, rondó, forma sonata ou qualquer outra. O nosso tempo é simultaneamente um tempo de privilégio e um tempo de orfandade: privilégio, porque somos nós mesmos que criamos a forma original de cada das nossas obras; orfandade, porque nos privamos de todas as formas associadas às antigas linguagens, trabalhadas ao longo de séculos. Esta orfandade é manifesta em muitas obras atuais que, justamente, por não partirem de um plano prévio, seja ele original ou estandardizado, redundam numa espécie de deambulação mais ou menos contemplativa cuja forma final acaba por ser pouco interessante. Pelo contrário, creio que devemos assumir o privilégio e trabalhar a fundo a dimensão formal, partindo dela para a composição. Significa isto que um plano inicial é necessariamente definitivo e irrevogável? Naturalmente que não. O interessante, justamente, é movermo-nos com liberdade no interior do plano: dar-lhe vida, reinventá-lo, contradizê-lo, se necessário, e resolver as suas contradições, entrar e sair dele – como qualquer compositor do passado relativamente à forma standard.

· Como na sua prática musical determina a relação entre o raciocínio e os impulsos criativos ou a inspiração? ·

PA: As duas dimensões são indissociáveis: a inspiração por si mesma não se traduz em nada, a não ser que ganhe forma – e não há como ganhá-la sem passar pela razão. Sempre utilizei a metáfora do arquiteto: para ganhar forma, um instante inspirado, uma visão impulsiva de um edifício em determinado espaço, necessita de um trabalho aturado – do cálculo rigoroso das proporções, para que o edifício seja exequível na realidade física, ao vertiginoso detalhe dos mais ínfimos aspetos do projeto. Na composição de uma obra musical acontece exatamente o mesmo: entre a ideia inspirada e a sua realização medeia um caminho de rigor e racionalidade. E não apenas em termos globais, mas na realização de pormenor: engenho e arte cruzam-se permanentemente a cada curva da filigrana.

· Que relação tem com as novas tecnologias, e em caso afirmativo, como elas influenciam a sua música? ·

PA: A tecnologia aplicada à música fez parte integrante da minha formação. A minha geração foi provavelmente a última que ainda aprendeu a trabalhar com fita magnética: compus exercícios em fita, cortei, colei, aprendi a manuseá-la, tanto na Escola Superior de Música de Lisboa como, logo a seguir, no Conservatório de Paris. Mesmo a tempo: nos anos noventa, com a generalização da informática musical, a fita foi desaparecendo e o IRCAM, por exemplo, deixou rapidamente de ter leitores que permitissem sequer copiar o espólio!... Aprendi os vários tipos de síntese e, no Conservatório de Paris, pude aprender e praticar toda a tecnologia emanada do GRM (Groupe de Recherches Musicales). Quando terminei o Conservatório fiquei um ano no IRCAM a absorver o «outro lado»: o tempo real. São dois mundos que, infelizmente, por razões históricas, comunicam mal: o tempo diferido do GRM permite um trabalho esplêndido sobre a matéria sonora, mas cria entidades sonoras fixas; o tempo real do IRCAM permite uma grande flexibilidade na interação entre a eletrónica e a performance instrumental, mas o trabalho sonoro é menos rico. O ideal é, sem dúvida, utilizar ambos: sequências sonoras previamente trabalhadas e, em simultâneo, um tempo real que as articule e que abra outras dimensões à própria performance instrumental.
Depois de frequentar o curso anual do IRCAM, que teve como corolário a composição da minha peça “Transmutations” (1999), para piano e eletrónica em tempo real, regressei ao IRCAM como «compositeur en recherche» e compus duas novas peças. Nos últimos anos, no entanto, não voltei a utilizar a tecnologia. A razão é simples: tecnologia e linguagens de programação estão em evolução permanente. Em menos de uma década tive de reescrever duas vezes o patch de “Transmutations”: três versões, ao todo, em menos de dez anos – e hoje, naturalmente, já não funciona. Ou nos dedicamos a uma rescrita permanente da componente informática, a uma atualização tecnológica constante, numa corrida contra o tempo, ou as nossas peças deixam simplesmente de poder ser tocadas. Enquanto o IRCAM existir, continuaremos a ouvir “Répons” em concerto; mas pergunto-me o que acontecerá a esta obra-prima da contemporaneidade, e a todas as obras que utilizem tecnologias semelhantes, se – ou quando – um ministro decidir que o IRCAM deixa de fazer sentido em termos políticos ou orçamentais. E, assim, o realismo deslocou a minha utopia para outros domínios e tenho deixado a tecnologia em paz...

· O experimentalismo desempenha um papel significante na sua música? ·

PA: Do meu ponto de vista, cada nova obra contém necessariamente uma dimensão experimental: sem ela, a obra não é mais que uma repetição. Isto é válido hoje como há 250 anos: cada ópera de Mozart constituiu uma experimentação sobre um tipo de teatro, uma linguagem musical e uma relação dramatúrgica entre ambos; cada Sinfonia de Haydn é animada pela procura de um novo efeito sonoro, retórico ou instrumental; cada Sonata de Beethoven é uma reinterpretação e um alargamento do modelo formal e da construção. O experimentalismo não é uma atitude circunstancial e contemporânea: emana de qualquer obra de arte, considerada como tal, e é determinante para mim. O que varia de época para época e de compositor para compositor são as dimensões mais ou menos abertas à experimentação. Não podemos experimentar tudo ao mesmo tempo e nem sempre a experimentação é imediatamente percetível ao ouvinte: se se colocar ao nível da morfologia ou da sonoridade, é manifesta; se agir no plano formal, será menos acessível.

· Quais as obras que pode considerar como pontos de viragem no seu percurso? ·

PA: O meu catálogo é reduzido. A minha vida profissional, partilhada entre a composição e a interpretação, entre o escasso tempo para a escrita e as funções que tenho desempenhado, fazem com que cada nova peça seja um patamar distante do anterior, no tempo como na maturação. De resto, observando as minhas peças, vejo um conjunto coerente que se expande passo a passo. Não encontro ruturas, mas uma evolução permanente das formas e da linguagem.

· Em que medida a composição e a performance constituem para si atividades complementares? ·

PA: São atividades complementares, absolutamente. Emanam da mesma pessoa, da mesma visão da música; mas, psicologicamente, agem de modo diferente: quando escrevo estou inteiramente concentrado em mim mesmo, voltado para dentro, prospetando; quando dirijo um concerto estou virado para fora, focado na obra de outro, procurando transmiti-la aos músicos, ao público. Ambas são importantes, ambas me completam em planos complementares, e a experiência de uma ilumina a outra: dirijo como dirijo porque sou compositor e tenho uma compreensão particular da escrita, das razões que levaram o autor a seguir este ou aquele caminho, a escrever desta ou daquela forma. Sou realmente um intérprete, não apenas um executante: coloco toda a minha experiência ao serviço da compreensão do texto musical e da sua transmissão segundo uma dramaturgia particular – da mesma forma que um encenador estabelece a sua dramaturgia do texto literário. Procuro transmitir uma visão própria numa sinfonia de Bruckner ou Mahler como numa obra de Luciano Berio ou de António Pinho Vargas; e a minha ótica de compositor guia-me com um prisma particular nesse percurso. Mas o reverso também é verdade: a minha experiência de intérprete dá-me um conhecimento do meio instrumental que dificilmente teria sem a experiência continuada da direção. O manusear da orquestra através da escrita é, evidentemente, irrigado pela minha função de interprete; e ao compor, os dois olhares sobrepõe-se diante da pauta – o que escreve e o que, de imediato, pondera a sua interpretação.

Parte 4 · a música portuguesa

· Tente avaliar a situação atual da música portuguesa. ·

PA: A música portuguesa atravessa, desde há décadas, um inequívoco florescimento. Diversas razões contribuem para tal. A primeira delas é a formação: as escolas profissionais e o ensino artístico especializado, em articulação com as escolas superiores e universidades, vieram alterar radicalmente o panorama educativo, formando novas gerações de músicos de craveira internacional. O número de jovens que, saídos das nossas licenciaturas, ingressam em segundos ciclos ou pós-graduações nas melhores escolas europeias e, mais tarde, em orquestras nacionais e estrangeiras, não tem precedentes. No plano da composição há um fator determinante que antecedeu toda esta transformação: a chegada a Portugal de Christopher Bochmann que, ao longo de quase quatro décadas, formou sistematicamente, com um ensino de nível internacional, consecutivas gerações de compositores. O ensino da composição em Portugal elevou-se a um patamar que, provavelmente, nunca tinha conhecido de forma tão duradoura. Muitos alunos de Christopher Bochmann ingressaram, depois, nas melhores escolas internacionais, às quais acederam com níveis de excelência, e, regressando a Portugal, continuaram, eles próprios, a sua obra pedagógica. Orgulho-me de ser um deles. Por outro lado, no plano estético, o atraso endémico de que tantas vezes padecemos ao longo da história, ligado à nossa contingência periférica e ao fraco investimento na área da cultura, é hoje muito relativizado: Portugal está integrado na União Europeia e, através dela, no mundo; os meios de comunicação permitem um acesso permanente à informação, e as obras musicais circulam como nunca antes na história da humanidade. Não é, pois, surpreendente que, em poucas décadas (são, na verdade, as décadas que nos afastam do Estado Novo e que se iniciam com a adesão de Portugal à CEE), tenhamos passado de um país fechado, no plano estético, animado por escassas visitas de artistas provindos dos grandes centros europeus, para um horizonte aberto em que todos sabem o que de mais novo se faz pelo mundo, e em que, dentro ou fora de portas, muitos participam desse fluxo criativo internacional. Resta a renovação das instituições: durante décadas a Fundação Calouste Gulbenkian desempenhou um papel essencial e solitário no apoio às artes; hoje são várias as instituições que partilham esse papel, contribuindo para uma presença crescente das artes na sociedade portuguesa. Estamos ainda muito, muito longe do que seria desejável (é o copo meio vazio), mas provavelmente mais perto do que nunca.

· No seu entender é possível identificar algum aspeto transversal na música portuguesa da atualidade? ·

PA: Se existe um aspeto transversal nas novas gerações de compositores, em Portugal, não será tanto uma corrente estética comum, mas a qualidade da escrita propriamente dita. Com mais de trinta anos de um ensino de grande qualidade, temos certamente compositores de escolas diversas, de tendências estéticas múltiplas e até contraditórias, nas quais o que prevalece é a competência individual, o conhecimento e a segurança técnica: é essa a riqueza e a força do tempo atual. De resto, como por toda a Europa, vivemos uma espécie de período internacional que, como no Renascimento, privilegia um estilo ou um conjunto de estilos prevalecentes, em detrimento de escolas locais especificamente ligadas a culturas nacionais. Veremos se, num futuro não tão distante, o crescimento dos extremos do espectro político, em diversos países, não virá redundar em novos fechamentos e em panoramas estéticos menos transversais, como no passado.

· Conforme a sua experiência, quais as diferenças entre o meio musical em Portugal e em outras partes do mundo? ·

PA: As diferenças têm essencialmente a ver com o investimento do Estado na cultura e com a presença da cultura no seio da sociedade. Em Portugal temos uma orquestra por cada 1.275.000 habitantes; a Alemanha tem o dobro do número de orquestras pelo mesmo número de habitantes; a Finlândia tem o quádruplo. Portugal tem uma única casa de ópera; a Alemanha tem mais de oitenta, ou seja, dez vezes mais relativamente à sua população. Estas diferenças espelham bem a maior ou menor presença da cultura musical na sociedade e, consequentemente, o «mercado» no seio do qual os músicos se movem: um instrumentista, um maestro, um compositor têm, em Portugal, um mercado muitíssimo limitado comparativamente com outros países na realidade europeia. A qualidade, no entanto, existe: a Orquestra Metropolita de Lisboa ou a Orquestra Sinfónica do Porto Casa da Música, para só dar dois exemplos, comparam com vantagem, em qualidade, com orquestras da sua dimensão no plano internacional. Temos, portanto, qualidade, nos nossos dias; continuamos a não ter escala – mas esta é uma questão endémica, na cultura como na economia. A Casa da Música é, de resto, um exemplo manifesto de como o investimento na cultura (público e privado, naquele caso) gera uma dinâmica que atrai público e que o multiplica ao longo dos anos: a presença da cultura musical na cidade do Porto, nas duas últimas décadas, não tem precedentes no passado recente.

Parte 5 · presente e futuro

· Quais são os seus projetos decorrentes e futuros? ·

PA: No momento em que dou esta entrevista (novembro de 2021) estou a terminar a rescrita de uma peça orquestral do início do meu catálogo: “Anamorphoses”. Foi a minha peça de final de curso no Conservatório de Paris, em 1998, e, simultaneamente, constituiu a minha primeira encomenda, proveniente do Festival Internacional de Música de Macau. A mais de 20 anos de distância, quis rescrever a peça, desenvolver muitos aspetos que ali eram ainda embrionários, melhorar a escrita orquestral, amplificar as ideias, estender a forma. A Casa da Música e a Cidade de Matosinhos encomendaram-me esta revisão da peça que, no seu estado atual, avizinha os trinta minutos de música, e que será estreada pela Orquestra Sinfónica do Porto Casa da Música em fevereiro de 2022 – se a crise pandémica assim o permitir... No próximo ano irei escrever um Concerto para Violino, dedicado a uma das grandes intérpretes do nosso tempo. Num futuro não muito longínquo gostaria de continuar o projeto do meu “Beaumarchais”: às cenas que escrevi, em 2016, para um espetáculo no Teatro Nacional D. Maria II, com a Orquestra Gulbenkian, gostaria de acrescentar uma série de novas cenas e formar uma ópera completa de maior extensão, assegurando um percurso dramático coerente entre os amores juvenis do Conde Almaviva por Rosina e o grande desenlace dramático de “La mère coupable”.

· Como vê o futuro da música de arte? ·

PA: Com otimismo: haverá sempre arte enquanto houver humanidade. As formas alterar-se-ão, a posição do compositor na sociedade mudará, mas não tenho nenhuma razão para crer que as gerações futuras sejam menos criativas, menos inovadoras ou menos sensíveis às artes que as gerações presentes e passadas.

Pedro Amaral, novembro de 2021
© MIC.PT

Texto escrito segudno o novo Acordo Ortográfico.

1 Por desejo do próprio compositor, Pedro Amaral normalmente opta por grafar «Lopes Graça» sem hífen.


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