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António Ferreira


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Questionário/ Entrevista

· Descreva as suas raízes familiares, culturais e sonoras/ musicais, destacando um ou vários aspetos essenciais para a definição e a constituição de quem é no tempo presente. ·

António Ferreira: Não houve nenhum episódio, evento ou situação familiar do passado que tenha sido relevante para a importância que a música teve e tem na minha vida adulta.
Até, digamos, aos meus 16 anos, a música era consumida como fruição identitária própria de uma adolescência comum. Entretanto, fiz no liceu amizades com várias pessoas que tiveram um papel importante no surgir em cena do rock português entre 1979 e princípios dos anos 80. Acabei por participar, nos bastidores, na parte produtiva desse processo. Isto permitiu-me ter acesso ocasional a materiais como sintetizadores (Korg, ARP, Moog), familiarizando-me com os rudimentos da eletrónica e de composição. Aqui «composição» eram tentativas enquadradas pelo que eu conseguia ouvir das gravações comerciais das bandas eletrónicas da época e cuja sonoridades e estruturas, eu tentava imitar. Era tudo muito simples, mas para mim excitante e divertido. A coisa foi-se tornando mais séria após a minha entrada na universidade em engenharia química. Fui fazendo mais conhecimentos pessoais, encontrando personagens que dispunham de fabulosas bibliotecas e discotecas pessoais, alargando a minha escuta e leituras, descobrindo a pluralidade da criação musical contemporânea, frequentando concertos da Gulbenkian, em especial as temporadas dedicadas à música contemporânea, etc. A consequência foi que o meu interesse pela engenharia foi diminuindo em proporção inversa ao meu interesse pelo universo musical. Se houver uma característica destacar desta época com relevância para a minha vida futura, será o do ecletismo total. À época e sem formação especificamente musical, seguia sempre o sabor da minha curiosidade. Como resultado, o meu saber sempre teve uma base algo anárquica, temperado com algum ceticismo em relação a autoridades estabelecidas...

· Quando, no decorrer do seu percurso, percebeu que dedicaria a sua atividade criativa e artística quase plenamente à composição em eletroacústica? ·

AF: Toda a atividade que descrevi anteriormente foi-se densificando e eu comecei a pensar que tinha de fazer alguma coisa, nomeadamente estruturar e ordenar os meus conhecimentos. Do pensamento quis passar à ação… Mas onde no Portugal dos anos 80? Existiria uma instituição por aí na Europa à qual eu pudesse aceder, tendo em conta as minhas limitações, nomeadamente financeiras? Na época, as viagens low-cost eram os comboios e o Inter-Rail, feitas no verão, quando existissem meios. De uma dessas viagens, veio comigo o disco “De Natura Sonorum” do compositor Bernard Parmegianni editado pelo GRM. Como já afirmei várias vezes, a audição deste LP (tecnologia da época, muito em voga atualmente…) foi simultaneamente uma revelação, provocação e motivação. O que era «aquilo»? Qual a motivação para o fazer? E, importante, como é que se fazia «aquilo»? Li, algures, que se podia fazer uma composição quase só utilizando microfones e gravadores… mais provocação para uma pessoa que se familiarizou com as cadeias eletroacústicas no âmbito do rock! Acabei por descobrir o Instituto de Sonologia em Utrecht que oferecia (bom, era pago) uma espécie de pós-graduação precisamente neste campo. A história complexa de como consegui chegar lá fica para outra vez. No fim, estamos em 1986 e eu estou no conservatório de Den Haag para onde o curso de Sonologia tinha transitado. Muito aconteceu e muito aprendi da estadia mas destaco três eventos : a aprendizagem em estúdio analógico (algo novamente muito em moda…) com o compositor Jaap Vink pelo ensino claro da ligação entre maquinaria com componentes discretos e criação (utilíssimo para o posterior mundo digital); a audição da estreia da peça “SUD” de Jean-Claude Risset, espacializada pelo próprio e cuja elegante combinação de paisagens sonoras pré-gravadas com eletrónica, unidas por processamento subtil me influenciou para sempre; e a apresentação, por um amigo local em fase final de estudos, da peça de piano “Triadic Memories” do Morton Feldmann. A sua estrutura longa de harmonias em «rotação» fizeram com que eu tenha sempre incorporado algum «objeto» harmónico nas minhas peças posteriores…como curiosidade, no dia do concerto, algures em 1987, no Grand Hall do conservatório estavam presentes sete pessoas, contando com o pianista e o ponto…
E cá estava! Um campo de criação acessível às minhas capacidades, com alto componente tecnológico, uma poética intrigante e esteticamente muito "avançada" questionando valores feitos e indo para além do conceito de nota. Como não gostar? Fiquei um compositor de eletroacústica confirmado…

· O seu caminho percorre de acordo com um plano, por exemplo sabe que daqui a «x» anos vai cumprir os objetivos «y»? Ou acha a realidade demasiado caótica para poder criar tais determinações? ·

AF: A questão do determinismo ocupa, por vezes o meu pensamento… em certos escritos atuais sobre física quântica, encontrei recentemente o seguinte postulado provocatório: de acordo com as leis da natureza correntemente estabelecidas e aceites, o futuro é determinado pelo passado, exceto para eventos quânticos ocasionais, os quais não podemos influenciar e que são verdadeiramente aleatórios. O livre arbítrio? A existência ou não deste depende do que queremos dizer por tal coisa. Nietzsche falou de algo semelhante: se o arbítrio é livre, não é causado por qualquer coisa. Mas se não é causado por coisa nenhuma – uma «causa não-causada» – então não pode ser causado por um «eu», independentemente da definição de «eu». A linguagem sempre se prestou a silogismos lógicos em contradição com eles próprios, são quase uma ferramenta da filosofia.... Sim, o macro deriva do micro, tanto quanto podemos saber…, mas que propriedades macro estamos a falar? Na escala humana, que é o que nos interessa aqui, não é percetível ou até relevante esta derivação pois mesmo sendo inescapável, não nos ajuda nas questões humanas da poética ou éticas de relações interpessoais…. Todo este meu discurso, ligeiramente pedante, para dizer que a física não provou a existência ou não do livre-arbítrio. Tal como Nietzsche (esse grande crítico da autoridade pré-recebida), a física fez com que questionássemos determinadas definições de livre-arbítrio. Reducionismo? A existência humana não me parece facilmente redutível.... Então, qual é a relevância disto? A previsão é difícil mesmo com leis deterministas, pois os resultados dependem das condições iniciais. Ora, eu não controlo de todo essas condições na minha vida, muito depende do contexto. Assim eu navego num sistema misto. Sim, tento ter objetivos e até faço planos, mas a complexidade da vida está sempre a criar caminhos diferentes…a serem usados ou não. O facto de «de acordo com as leis da natureza correntemente estabelecidas e aceites, o futuro é determinado pelo passado, exceto para eventos quânticos ocasionais, os quais não podemos influenciar e que são verdadeiramente aleatórios» não me deixa acordado à noite…

· No tempo presente, quais são as suas preocupações artísticas principais? ·

AF: Nunca gostei da palavra «preocupação». Implica que nos estamos a ocupar preventivamente, pré, antecipando eventos. Antecipar um futuro necessariamente incerto pode ser útil, mas pode ocupar demasiado o tempo presente. Dito isto, a conjuntura atual (2022) da sociedade global é deveras preocupante e acabo distraído pelos inúmeros eventos que decorrem na atualidade. Mas o que posso fazer? A criação acaba sempre por ser uma ótima disciplina para ganhar foco. Talvez por uma vontade de segurança tenha composto no último ano uma série de miniaturas resolutamente tonais para piano a que chamo “Retropias” (utopias retro). Infelizmente, a retropia está muito em moda no campo das soluções políticas com acenos ao retorno a míticas idades de ouro perdidas.... Noutro campo, gostaria de explorar a composição espacial utilizando as ferramentas atuais do sistema Ambisonics. Bem sei que nada disto é novidade, mas gostaria de fazer a minha tentativa.

· Quais são as diferenças entre a composição instrumental (acústica) e a composição em eletroacústica? Em que medida a circulação entre estas práticas tem vindo a enriquecer a música das últimas décadas? ·

AF: A existência da eletroacústica, aqui num sentido lato, é um fator determinante da música do século XX, seja qual for a estética ou tipologia em causa. Causou mudanças paradigmáticas, quer na modalidade da audição, quer no timbre e texturas da música instrumental. Pensemos assim: o som pode ser descrito como ação mecânica à distância, uma perturbação que se propaga num meio gasoso, líquido ou sólido. A acústica descreve esta ação recorrendo a ferramentas físico-matemáticas e a leis naturais bem estabelecidas. A junção da eletricidade com a mecânica deu-nos, juntamente com os avanços da telefonia no final do século XIX, uma cadeia electro-mecânica-acústica de transdutores (microfones, altifalantes), transformadores (amplificadores, filtros, etc.) e a possibilidade de registar/ gravar as oscilações do campo sonoro num suporte físico (discos de laca, acetato, fita magnética, meios digitais subsequentes, ...).
A amplificação e a gravação sonora criaram assim duas deslocações: no tempo (a escuta pode ser diferida) e no espaço (qualquer lugar pode ser sonificado). A escuta musical autonomiza-se e desloca-se não dependendo já da produção acústica do momento.
Ora, a existência de um suporte sonoro abre as portas à edição: melhorar, limpar, repetir. Também permite a criação de mercadoria (discos, edições) e a sua disseminação no tempo e espaço. E passar da edição, mais ainda com o advento da digitalização, para a geração/ composição do material sonoro é quase trivial. Mais uma vez, todos os géneros musicais são afetados. Não espanta, assim, o emergir de uma corrente mais autónoma de composição, que se dispunha a utilizar o material concreto da música (gravação) ou a utilizar dispositivos eletrónicos para gerar complexos sonoros. A cadeia eletroacústica influenciou muito a composição das últimas décadas. Por exemplo, o fenómeno de desfasamento gradual entre duas gravações inspirou a criação de uma técnica de composição, um contraponto modernizado para instrumentos acústicos, que é ainda muito utilizada.
Agora, em composição instrumental e devido à divisão de tarefas que se foi instalando na sociedade industrial, contamos com instrumentistas hiperespecializados e toda uma infraestrutura de suporte logístico (mais ou menos). Em contraste, na composição eletroacústica, tudo está quase sempre por fazer: os sons têm de ser construídos, a sua organização não é obvia (não há nada sistematizado), recorre-se a analogias do passado, a metáforas poéticas ou o que se conseguir. Os resultados são muito variáveis e esta modalidade de composição é impiedosa: se a composição é menos conseguida, a coisa soa terrível. Muitos compositores(as) acabam por ter um ódio quase visceral à eletroacústica...será que ainda é música? Ou uma curiosidade destinada ao esquecimento? Mas queiramos ou não, a música eletroacústica e as suas sonoridades existem e são influentes. Isto acontece quer por via da junção direta da cadeia eletroacústica com a instrumentação acústica, quer por via de processos direta ou vagamente inspirados no funcionamento dessa cadeia. Escutando peças recentes, dos últimos 20 anos, para duo, trio ou quarteto de cordas, eu por vezes julgo estar a escutar eletroacústica, fruto das técnicas empregues.

· Como poderia descrever o timbre da sua música? Acha que é possível encontrar nele os seus interesses musicais da juventude? ·

AF: A música que acompanhou os meus primeiros anos formativos, digamos até aos 20, já lá vai. Mas quando comecei a Sonologia e fui confrontado com o material à disposição, dois aspetos fizeram-me pensar: no estúdio analógico, com os seus osciladores, alguns deles adaptados de material de engenharia eletrónica, era trivial produzir longos estratos sonoros, sobrepondo geradores e criando mudanças contínuas que podiam ser mais ou menos dinâmicos. O mais trabalhoso era fazer interessantes sons de curta duração. No estúdio digital, além de sistemas baseados em grandes computadores (melhores do que os existiam no atualmente defunto Centro de Cálculo do Instituto Superior Técnico), havia principalmente sintetizadores controlados pelo sistema MIDI e um pequeno computador. Aqui, senti que a questão era inversa: baseados no conceito de nota e escala diatónica, era trivial produzir sons de curta duração cujo interesse dependia das possibilidades da maquinaria (e engenho do operador). De facto, a implementação original do sistema MIDI tinha o piano como instrumento no ‘horizonte’, com consequente tendência para criar composições baseadas em hierarquias e modulações. As notas podiam, evidentemente, ser sustidas, mas a produção de longas texturas sonoras não estáticas e com algum controle evolutivo dentro do próprio evento requeria mais esforço. Com o tempo, fui desenvolvendo estratégias, quer para me opor, quer para utilizar estes aspetos. Esta tensão ficou-me e acho que é audível na maior parte da minha produção musical.

· O humor ou a ironia fazem parte da sua música? Em caso afirmativo, como os mesmos se exprimem na sua criação e quais são as caraterísticas que lhes pode atribuir? ·

AF: Não me parece... talvez nos títulos haja alguma ironia e eu emprego-a muito no meu discurso pessoal, com os inevitáveis mal-entendidos! Se alguém escutar humor ou algo de cómico no que produzo, por mim está bem.

· O que, no seu entender e de acordo com a sua postura estética e experiência, pode exprimir um discurso musical? ·

AF: Acho que estou mais próximo do John Cage quando ele afirma que se queria exprimir alguma coisa, então utilizava a linguagem natural. Atenção, para mim a voz humana é o instrumento primordial e desde sempre se utilizou a palavra cantada ou declamada na música. A comunicação verbal é muito mais do que palavras estabilizadas por um qualquer dicionário. Importa o que se diz, como se diz, o que se não diz, o contexto em que se diz, ficamos zangados, emocionados... a música pode intensificar a experiência emocional numa simbiose quase total. Mas podemos cair em ideias absolutistas e essencialistas (a autonomia total, a música absoluta) ou construtivistas (o programa, o contexto). Estas querelas, intensas no século XIX, onde a modernidade galopante dissolvia antigas normas, parecem-me ultrapassadas. Como disse, a tecnologia alterou a importância relativa da música na sociedade, sendo que a arte é tratada como uma comodidade. Então, e para mim, a música expõe, sonifica, as mudanças subterrâneas que vão sempre acontecendo, para lá das estéticas ou géneros específicos. Eu oiço a mudança, embora sem a poder identificar claramente. Um pouco como a polifonia vocal entre os séculos XV e XVI, cujo virtuosismo contrapontístico das várias vozes refletia a pluralidade das vozes que se faziam ouvir nas cidades, cuja importância crescia.

· Em que medida os novos instrumentos eletrónicos e digitais abrem novos caminhos e quando os mesmos se podem tornar constrangedores? ·

AF: Existe uma miríade de instrumentos eletrónicos e digitais quer virtuais quer tangíveis. Para mim o maior risco é a dispersão e a distração: podemos acabar entretidos com processos e esquecer a música. Todos eles implementam uma ideia, um conceito, um modo de fazer e pensar. Como tal, estamos sempre a interagir, a lidar, a subverter os conceitos de quem os concretizou. Muitos destes instrumentos são eficazes e úteis, mas convém ter uma visão clara do que queremos, sob pena de passarmos horas a mexer em parâmetros só para ver se acontece qualquer coisa... Não estou a prescrever uma ética de composição, cada um escolhe o que for útil para si. Mas e no meu caso, foi-me muito proveitoso a prática do estúdio analógico que obrigava a uma clareza na utilização e combinação de diversos módulos geradores e transformadores. Também foi esclarecedor e didático aprender linguagens de programação aplicadas quer ao processamento de sinal quer à composição em si. Tal obrigou-me a um pensamento disciplinado e transparência lógica. Isto também permitia criar os nossos próprios instrumentos e como tal, fundir práticas. No entanto, esta disciplina e clareza são a força e simultaneamente a limitação do instrumentário digital. Na minha prática, eu sou bastante anárquico, mas reconheço a importância destas aprendizagens, nem que seja para as deliberadamente ignorar.

· Em que sentido a invenção e a pesquisa constituem para si elementos indissociáveis da criação musical e, em geral, da arte? ·

AF: Se substituirmos «invenção e pesquisa» pelas palavras, mais pedestres «tentativa e erro"» então não é só uma eventual característica da arte, mas de quase toda a atividade humana. São indissociáveis da curiosidade e até de uma certa inquietude existencial que nos move... Mas, paralelamente, temos de resolver a questão das nossas necessidades materiais indispensáveis à existência. Temos de criar algumas condições materiais para a criação. As soluções para isto serão pessoais e individuais, mas creio que posso dizer o seguinte: o experimentalismo na criação musical necessita de patrocínio e de alguma independência da popularidade, com o inevitável divorcio da realidade comercial. Isto soa a arrogância elitista tanto mais que quase só no meio académico (universidades) ou em meios patrocinados (rádios, conservatórios) é que isto foi possível. Mas foi este patrocínio que permitiu a exploração da composição eletrónica e consequentes experiências no campo do timbre e da textura. Foi aqui que os sons da natureza apreciados como uma música de «direito próprio» e incorporados em composições; e que tradições esquecidas da música dita ocidental foram redescobertas e transformadas em criações contemporâneas. Foi criado um fértil campo de ideias que se espalhou por todos os géneros de criação musical. Não tivesse existido este patrocínio e não tivesse existido a possibilidade de experimentar, inventar, pesquisar e, até de disseminar, com alguma liberdade, o panorama atual da criação musical não seria tão vibrante, plural e excitante como é.

· Na entrevista dada ao MIC.PT em 2013 disse: «o meu ‘instrumento’ principal é a prática da escuta» 1. Como escuta a música? É um processo mais racional ou emocional? ·

AF: É para mim uma evidência que aquilo que chamamos racional e emocional serem parte de uma experiência unitária. O pensamento «rápido» das emoções é simbiótico do pensamento «lento» da formalização e racionalização. As emoções "marcam" positivamente ou negativamente o que é posto em evidência pelo lento processo de racionalização e como tal aquilo que é incorporado na nossa memória.
A memória é o contexto que dirige e afeta as nossas expectativas, especialmente o que escutamos. Alguém afirmou que a música eletroacústica era feita pela escuta e para a escuta. Mas não será assim, maior ou menor grau, com toda a música? De facto, compor é fazer escolhas audíveis. Mais ainda numa prática cujo suporte físico é simultaneamente, «pauta e concretização sonora». Não será descabido dizer que as escutas têm uma história pessoal e que, globalmente, cada grupo, sociedade, época, tem uma cultura de escuta. Esta cultura está em mutação constante e atualmente em mutação acelerada pelo tal processo que já mencionei de deslocação no tempo e espaço permitido pela cadeia eletroacústica. A relação que as pessoas têm com a música é maioritariamente feita através de gravações. Porque talvez seja relevante, vou mencionar uma pequena historia pessoal: algures na minha vida, passei vários meses a escutar quase exclusivamente gravações de ragas indianas, em que se adotava o violino ocidental como voz principal. Quando após este tempo, fui escutar uma gravação, que conhecia bem de um dos quartetos de Beethoven, interpretados por um conjunto de renome, fiquei surpreendido com as miríades de micro inflexões, e microtonalidades existentes, bem como os choques do arco nas cordas para evidenciar a «nota». Nunca tinha escutado tal coisa antes de me ter «descondicionado» com a sonoridade de outra cultura, em que o conceito de «nota» é um objeto muito fluido. Dai a convicção que a escuta tinha de ser trabalhada, tornando-se, assim, no meu instrumento principal.

· Na entrevista dada ao MIC.PT em 2016 o compositor João Madureira disse que «a música é filosofia, é política, e que, por sua vez, é uma forma de habitar o mundo» 2. Sente proximidade com esta afirmação? ·

AF: Bastante. Como dizia o filosofo: «o homem habita em poeta». O estar aqui neste mundo, como alguém que tem alguma familiaridade com a criação musical, implica uma poética irrequieta de questionamento. Falei da composição como fazer escolhas audíveis, mesmo que aparentemente nada exista para ouvir; mas há sempre algo para escutar. Podemos fazer um paralelismo com a ética: aqui são escolhas de comportamentos e ações que interagem com os outros. Talvez a genética tenha também algo para dizer neste contexto… Qual é a melhor escolha? Só sabemos fazendo-a.…, mas nós não nascemos ensinados e tivemos uma formação, intencional ou não, logo a nossa decisão tem uma história. Seguindo correntes recentes da filosofia, eu reconheço a existência de perspetivas e construções nas nossas relações com o mundo. Mas tal não implica que objetos desse mundo sejam meras construções. Existem objetos independentes de nós, reais, juntamente com as nossas construções também elas reais. De um realismo exclusivamente interessado num mundo sem espectadores, ou um construtivismo exclusivamente interessado num mundo com espectadores, para a um mundo com pessoas (factos que não tem interesse em mim coexistem com os meus interesses e construções). Estamos no mundo e não podemos sair dele para ter uma vista «alargada». O que faz que as nossas ações, a nossa ética tenha sempre uma dimensão política pois envolve negociações de posições com outras pessoas, imersas num dado contexto. Na música, encontramos atitudes explicitas: compositores que defendem que mudanças políticas radicais implicam uma arte radical. Outros, com a prática da improvisação, sonificam várias possibilidades de relacionamentos entre pessoas diversas. Pelo que afirmar que a música e política não se podem misturar, é, para mim, algo irrealista. Eu compreendo que se queira pugnar pela autonomia da arte em oposição ao ambiente «dos políticos» percebido como intriguista, hipócrita e absolutista. Mas a política não se reduz a tal coisa, tal como a criação musical não se reduz às intrigas de repartições num conservatório. Somos humanos e negociar espaços comuns pode gerar confrontos. Ultrapassa-los é a essência da política. Todos o fazemos em maior ou menor grau. Dito isto e com referência à conjuntura atual, as pessoas envolvidas na criação musical não podem escudar-se numa suposta autonomia da arte. Não pretendo dizer às pessoas como agir, mas clarifiquem as suas posições e assumam as eventuais consequências.

· Como na sua atividade concilia a oposição entre «a ocupação» e «a vocação»? ·

AF: Não sei se percebo bem a pergunta...posso dizer que a criação musical é muito importante para a minha vivência. Mas como existem as tais necessidades materiais indispensáveis à existência, tal implica lidar com a questão financeira. Eu fui desenvolvendo uma atividade paralela no campo da Acústica e Poluição Sonora que me vai garantindo a sobrevivência. É a minha solução. Gosto de ambas atividades embora a seja a música que me faz correr... estar ocupado por ela é um prazer genuíno.

· Prefere trabalhar isolado na «tranquilidade do campo» ou no meio do «alvoroço urbano»? ·

AF: Sempre preferi trabalhar, seja lá no que for, num ambiente calmo e até com algum isolamento. Há quem goste de, por exemplo, ir estudar para cafés pois, dizem, o burburinho ambiente ajuda-os a focar. Necessitam de um fundo de atividade como suporte à concentração e a ausência de atividade implica uma perca de concentração, pois sentem-se compelidos a atividades para preencher a ausência. Para mim, a situação inverte-se. O tal fundo de atividade rapidamente fica em evidência, distrai-me, começo a observar pessoas, a imaginar histórias. Tenho dificuldade em abstrair. Também é verdade que como, por necessidade de partilha de espaço, sempre compus com auscultadores, pelo que estou confortável com um certo isolamento.

· Poderia revelar em que está a trabalhar neste momento e quais são os seus projetos artísticos planeados para 2023, 2024, ...? ·

AF: Devido à conjuntura atual, tenho de me focar, mais do que gostaria, em questões de sobrevivência material. Para lá de 2023, é o futuro longínquo... quanto a projetos artísticos, haveria umas edições que gostaria de fazer, para lançar muito material que acumulei ao longo dos anos. Mas isso dependerá da evolução da tal conjuntura.

· Na Entrevista dada ao MIC.PT em 2013 disse: «...aqui estamos nós – existem excelentes compositores e intérpretes, mas de português só podem, infelizmente, utilizar o nome. A realização continuada de projetos, a existência de encomendas, de projetos inter-artes esbarra sempre com a descontinuidade do projeto socioeconómico do país» 3. Passados quase 10 anos, como neste momento pode avaliar a situação da música erudita contemporânea em Portugal? ·

AF: Tenho um conhecimento algo fragmentado e incompleto do que se passa a nível nacional. Mas acho que mantenho o essencial da minha observação. Muito depende da ação voluntariosa de algumas personalidades, se bem que enquadradas com algum apoio institucional (universidades, conservatórios, festivais). Diga-se que, fruto da acessibilidade dos sistemas eletracústicos, as músicas eletrónicas têm, na atualidade, inúmeras praticas e uma pluralidade de agentes. Mas criadores freelancer, um pouco por todo o lado, estão entregues a si próprios e com remunerações tendencialmente baixas pois, segundo se acha, «quem corre por gosto não cansa». Uma solução, para alguns, é a dedicação à carreira académica. Mas isso é outra história e não serve para todos...

· Se não tivesse seguido o caminho de trabalhar com o som (tanto no domínio da composição em eletroacústica como no da engenharia acústica), quais poderiam ser os caminhos alternativos? ·

AF: Provavelmente seguiria o caminho da Engenharia Química. Talvez no campo da Química Orgânica ou da Bioquímica. Tive sempre a atração pela síntese de fragrâncias e sabores. Poderia também ir para outro campo: a filosofia atrai-me muito. Mas isso implicaria a carreira académica completa e eu, definitivamente, não gosto de dar aulas. O mais certo era ser um engenheiro comum, profissionalmente bem-sucedido, com uma vida materialmente confortável, talvez com alguns problemas de excesso de peso ou cardiovasculares e em que a música seria despromovida à categoria de entretenimento.

· Numa das entrevistas de 2020 o compositor austríaco Georg Friedrich Haas disse que «os criadores da nova arte agem como fermento na sociedade» 4. Qual é, na sua opinião, o papel que a música de arte desempenha na sociedade e como é possível aumentar a importância e o impacto deste papel? ·

AF: Devo dizer que aprecio bastante as obras do Georg Friedrich Haas, especialmente os seus quartetos de cordas. No Quarteto n.º 2, ele explora campos espectrais e figuras microtonais que se podem escutar em muitas outras obras suas. No Quarteto n.º 3, interpretado em escuridão total, encontro um curioso paralelo com a situação acusmática da ocultação das fontes sonoras, explorada pela eletroacústica.
Em diversas ocasiões, ele tem-se questionado sobre a posição da composição erudita num mundo «cada vez mais mergulhado na escuridão e em perca de todas as utopias». Ora, as atitudes em relação à composição oscilam entre valores de ordem/ desordem, disciplina/ indisciplina, hierarquia/ anarquia, num continuum que espelha a complexidade da vivência. Tais valores criam tensões e confrontos, e não é disparatado dizer que tais aspetos estão refletidos nas criações musicais de várias épocas.
Por outro lado, a música de arte sempre foi patrocinada e a liberdade criativa audível permitida depende, em parte, da relação entre os músicos e os seus patrocinadores (sejam eles, uma classe, uma sociedade, um público). Existe esta tensão pois a música, pelo seu efeito potencialmente extasiante, sempre foi considerada como politicamente suspeita. É sempre mau sinal quando um regime começa a vigiar os artistas. Mas a sociedade, por via de instituições publicas, pode criar santuários de liberdade, cuja existência beneficia a atividade criativa. Isto é um desenvolvimento recente e permite a existência de espaço cultural, no qual surgem obras como as do Georg Friedrich Haas. Pode-se sentir esta possibilidade de compor, em relativa liberdade, como um privilégio talvez questionável do chamado Norte Global. Mas a expensão da nossa escuta, permitida por tais obras, tem um paralelo com a expansão da nossa consciência do nosso estar aqui. A sobrevivência da música de arte é um valor da vivência social plural e deverá ser apoiada por todos os meios possíveis, públicos e privados. Dito isto, a música de arte representa uma parte ínfima da atividade musical global e com dificuldade em atrair publico que não seja especializado. Não sei como mudar isto ou se até é algo resolúvel. Mas muitos ou poucos, enquanto existirem ouvintes, a criação musical continuará...

· Em termos estéticos e técnicos, a história da música de arte ocidental está cheia de nascimentos, ruturas, mortes, renascimentos, continuações, descontinuações, outras ruturas e por aí fora... Num exercício de «futurologia», poderia desenhar o futuro da música de arte ocidental? ·

AF: É uma pergunta difícil e creio que não vou conseguir dar uma resposta satisfatória ou relevante. Digamos que a música de arte ocidental ainda apresenta no seu âmago a ideia, criada no século XIX, de uma universalidade da música. A realidade é que a vasta maioria dos compositores se encontra numa situação em que escreve, quase exclusivamente, para conjuntos instrumentais especializados, para festivais especializados e para uma audiência especializada. Claro, as tensões entre inclinações dos criadores, materiais e linguagem à disposição e os ouvintes, são uma constante de sempre. Então, na atualidade, temos uma profusão labiríntica de estilos e possibilidades, mas nos resultados faz-se sentir uma certa stasis. Ou seja, o ritmo e intensidade de ruturas e inovações parece ter diminuído, isto comparado com o vendaval que foi a segunda metade do século XX. Argumenta-se (e creio que está documentado), que nessa época, a música de arte ocidental (e a criação artística em geral) beneficiou de um grande patrocínio e apoio, isto enquadrado na política de confrontação da Guerra Fria. O ocidente tinha de brilhar e em acordo com tal estratégia, apoiaram-se criadores, experiências e circulação de obras. Com o terminar dessa situação, os apoios diminuíram drasticamente, o que pode ter levado ao presente estado de recirculação quase contínua de «velhas» vanguardas. É verdade que em qualquer altura existem sempre continuidades com o passado recente. Mas a minha sensação é que se instalou uma espécie de hegemonia da disrupção. Não sei... talvez se estejam a preparar novas vias, visto que o projeto da modernidade está sempre ele próprio em modernização continua. Talvez isto seja uma nova modernidade, sempre mais plural. Talvez tudo seja cíclico. Talvez e parafraseando o poeta, o significado de tudo isto seja chegarmos aonde começamos e assim re-escutar a música como pela primeira vez. Ou talvez eu esteja a ficar realmente velho...

António Ferreira, novembro/ dezembro de 2022
© MIC.PT

NOTAS DE RODAPÉ

1 Entrevista a António Ferreira conduzida pelo MIC.PT em fevereiro de 2013 e disponível em: LIGAÇÃO.
2 Entrevista a João Madureira conduzida pelo MIC.PT em em outubro de 2016 e disponível em: LIGAÇÃO.
3 Entrevista a António Ferreira conduzida pelo MIC.PT em fevereiro de 2013 e disponível em: LIGAÇÃO.
4 Entrevista a Georg Friedrich Haas conduzida por Filip Lech em junho de 2020 e disponível no portal Culture.pl: LIGAÇÃO.


António Ferreira · Entrevista Na 1.ª Pessoa

 
Entrevista com António Ferreira conduzida por Pedro Boléo
gravação do O’culto da Ajuda em Lisboa (2022.06.19)
 

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