Emmanuel Nunes inicia os seus estudos em Harmonia, Contraponto e Fuga em 1959 com Francine Benoît, na Academia de Amadores de Música de Lisboa, onde também frequenta as aulas de Louis Saguer sobre Escrita Musical do Século XX, revelando-se estas últimas de extrema importância para o compositor. Entre 1960 e a sua partida para Paris, em 1964, tem aulas particulares de Composição com Fernando Lopes-Graça, uma vez que sendo membro do Partido Comunista, este havia sido proibido de leccionar pelo Regime Fascista. Entre 1962 e 1964 frequenta os Cursos de Verão de Darmstadt, onde se interessa sobretudo pelas aulas de Henri Pousseur e Pierre Boulez. Passa então um ano em Paris, preparando-se para estudar composição com Karlheinz Stockhausen e novamente com Henri Pousseur na Rheinische Musikschule de Colónia de 1965 a 1967. Regressa a Paris onde volta a trabalhar em solitário até 1970. Por forma a obter uma bolsa do Ministério de Educação Nacional em Portugal, Emmanuel Nunes inscreve-se nas aulas de Estética de Marcel Beaufils no CNSM (Conservatoire National Supérieur de Musique et de Danse de Paris). Obtém o seu primeiro prémio em 1971 depois de desenvolver com Michel Guiomar, na Sorbonne, uma tese sobre a 2ª Cantata de Anton Webern e a evolução da linguagem musical dessa época, trabalho que deixará inacabado.
De 1974 a 1976, Emmanuel Nunes é responsável pelas aulas de Iniciação à Composição do Séc. XX da Universidade de Pau (em França), destinadas a futuros professores de Educação Musical. A partir de 1981, dirige seminários de Composição na Fundação Gulbenkian em Lisboa e no ano seguinte é convidado por Ivan Tchérépnine para realizar conferências sobre a sua música na Universidade de Harvard. De 1986 a 1991 desempenha as funções de professor na Escola Superior de Música de Freiburg em Breisgau. De 1990 a 1994 lecciona Composição e Música de Câmara na Escola Nacional de Música de Romainville e Composição no CNSM (Escola Superior do Conservatório Nacional de Música e Dança de Paris) a partir de 1992. Em 1985 é convidado por Pierre-Yves Artaud para dar um conjunto de seminários subordinados ao tema “L’attitude instrumentale” no IRCAM (Institut de Recherche et Coordination Acoustique / Musique), que virá a repetir no ano seguinte durante os Ateliers de Verão de Darmstadt. Em 1995 lecciona na Academia de Verão do IRCAM e novamente em Darmstadt em 2002. Em 2004, é convidado para realizar uma série de aulas, conferências e concertos na Universidade Católica de Santiago do Chile.
Os primeiros concertos de Emmanuel Nunes têm lugar na Fundação Gulbenkian em Lisboa, nomeadamente Purlieu em 1970 e Dawn Wo em 1971, na sequência dos quais André Jouve o apresenta em “Perspectives du XXème siècle”, naqueles que foram os seus primeiros concertos em Paris. Em 1975, a estreia de Voyage du Corps (para conjunto vocal e electrónica em tempo real) no Festival de Royan, está na génese do seu encontro com Tristan Murail que passa a incluir regularmente Emmanuel Nunes no “L’Itinéraire” até 1980. A sua notoriedade é reconhecida em 1977 com a ida da Orquestra de Baden Baden a Royan para a estreia de Ruf e a sua repetição no mesmo ano durante Festival de Donaueschingen, sob a direcção de Ernest Bour. No seguimento destes concertos, é convidado a mudar-se para Berlim por um período de um ano como bolseiro da DAAD. É a partir do fim dos anos 70, com a entrada de Luís Pereira Leal como director musical na Fundação Gulbenkian em Lisboa, que a sua obra passa a ser apresentada com regularidade, recebendo diversas encomendas e ainda através de duas retrospectivas de relevo.
Entre 1986 e 1988 e pelas mãos do Ensemble Modern e de Ernest Bour, os concertos de Emmanuel Nunes multiplicam-se por vários países, sobretudo com as obras Wandlungen e Duktus. 1992 é o ano da apresentação de Quodlibet no Coliseu dos Recreios de Lisboa, peça para conjunto vocal, seis percussões e orquestra, que volta a ser tocada cerca de 15 vezes pela Europa. No mesmo ano, o Festival de Outono em Paris dedica-lhe uma retrospectiva, bem como apresenta vários concertos em 1994 e 1996, com a estreia de Omnia Mutantur Nihil Interit. Também em 1995 e 1996, são tocadas várias obras do compositor durante o Festival de Edimburgo.
Emmanuel Nunes trabalha com regularidade no IRCAM desde 1989, ano em que começa a compor Lichtung I e inicia um percurso de estreita colaboração e pesquisa com Eric Daubresse, que mantém até hoje. O seu trabalho com o “tempo real” termina em 1992 com a estreia de Lichtung I em Paris e da primeira versão de Lichtung II em 1996; as versões definitivas e integrais das duas peças virão a ser tocadas no ano 2000 em Paris, pelo Ensemble Intercontemporain, dirigido por Jonathan Nott. No entanto, diversas obras suas têm sido compostas sem recurso a meios informáticos.
Nos anos 90, compõe Musivus e realiza uma nova versão de Nachtmusik II, duas obras para grande orquestra que virão a ser apresentadas respectivamente em 2000 na Filarmónica de Colónia e em 2002 em Donaueschingen. Duas importantes retrospectivas do compositor são levadas a cabo pelo Festival Ars Música de Bruxelas em 1999 e pelo Festival Tage für Neue Musik de Zurique em 2000. É também de realçar a estreita colaboração mantida com o Remix Ensemble, desde a criação deste agrupamento portuense.
Presentemente, o compositor tem dois projectos em curso: uma ópera baseada no conto de Goethe Das Märchen; e uma série de peças inspiradas na novela La Douce de Dostoievsky, que serão reagrupadas para apresentação ao vivo e que formarão uma obra a meio-caminho entre o Teatro e a Ópera de Câmara e em que o protagonismo é dado ao recitante. Improvisation é o título geral destas peças, sendo que as duas primeiras são estreadas no Festival Wittener Tage em 2003; uma por Christophe Desjardins para viola solo e outra pelo Ensemble Recherche, dirigido por Franck Ollu.
Emmanuel Nunes é Doutor Honoris Causa pela Universidade de Paris VIII desde 1996 e a sua carreira musical tem sido reconhecida por várias entidades, designadamente através do Prémio CIM – UNESCO em 1999 e do Prémio Pessoa em 2000.
Biografia
Um dia, no início dos anos 80, quando Emmanuel Nunes tinha cerca de quarenta anos, apanhou um táxi ao sair de um ensaio na Radio France, em Paris. Pedindo-lhe desculpa por lhe falar nisso, o taxista disse-lhe que ele lhe fazia lembrar uma criança que ele tinha conhecido na sua juventude, que tinha problemas semelhantes aos dele para andar e falar: era uma criança muito inteligente que era obrigada a trazer a sua máquina de escrever quando tinha testes na escola. Apesar de o taxista falar francês muito correctamente, Emmanuel apercebeu-se de um leve sotaque e perguntou-lhe de onde era. “Sou português”. “Eu também!”. À queima-roupa, o taxista exclamou: “Você é o Emmanuel! Quem sou eu?”. Este homem tinha sido condutor da carrinha da sua escola quando ele era criança.
Emmanuel Nunes nasceu em Lisboa, no dia 31 de Agosto de 1941. Muito pequeno ainda, aprendeu a ler com os pais, entrando depois com seis anos na escola primária. No entanto, como tinha dificuldades com o grafismo e a dicção, devido a uma doença neuro-motora, no ano seguinte os pais inscreveram-no numa escola especial para crianças com deficiências intelectuais e mentais. Era uma escola privada, instalada num grande apartamento, de um casal com formação nos novos métodos pedagógicos inspirados por Freinet e Montessori. Nessa escola, Emmanuel era a única criança que estudava o programa normal e ia fazer os exames do ensino público fora, tendo passado sempre.
Aos doze anos, retoma a escolaridade normal, entrando no terceiro ano do liceu. Passa no exame do final do quinto ano, com quinze anos, e tem que escolher uma orientação para concluir os dois últimos anos do liceu. Sob a influência paterna, opta pela secção de ciências e obtém o diploma do curso liceal em Junho de 1958. No entanto, em Setembro desse ano, reprova no exame de admissão à Faculdade de Farmácia. Tinha acabado de fazer dezassete anos. Ao saber do resultado, o pai diz-lhe que tem vergonha dele por ter reprovado depois de todos os esforços administrativos e pessoais que ele teve que fazer para que o seu filho deficiente tivesse a possibilidade física de fazer os seus exames. Por exemplo, fora preciso durante meses criar enormes dossiers e contactar toda a espécie de sumidades para finalmente conseguir obter, através de uma cunha, um mínimo de condições materiais, como a autorização de escrever com uma máquina, e de continuar a trabalhar durante a meia hora de intervalo, para poder dispor de um pouco mais de tempo.
Começa então um período negro e conflituoso que irá durar três anos. Emmanuel decide voltar a apresentar-se a exame em Junho, mas estudando sozinho em casa para poupar ao pai, que entretanto deixara de lhe falar, as propinas da escola. Está sombrio e depressivo e, em Junho de 1959, reprova pela segunda vez no exame de admissão a Farmácia. No ano seguinte, chumba pela terceira vez ao tentar entrar na Faculdade de Medicina, em Junho de 1960.
Durante estes três sombrios anos, Emmanuel começa a pensar seriamente estudar música. Já não anda na escola e continua a trabalhar sozinho sem conseguir obter grandes resultados. No entanto, depois do seu segundo fracasso, inscreve-se na Academia de Música. Tem então dezoito anos.
Na verdade, até essa altura, ele não tinha nenhuma ideia precisa em relação a uma ocupação futura, mas já tinha sentido o desejo de aprender música. Ainda pequeno, entre os cinco e os oito anos, apoquentava a criada para que lhe desse uma série de panelas que ele agrupava, e em que depois batia fazendo uma grande algazarra com enorme regozijo. Mais tarde, dirá ironicamente: “Foi o acto mais ligado ao som de que me recordo antes de me iniciar na música, o que não me levou no entanto a aderir à música concreta…”. (Entrevista a Pedro Figueiredo na revista portuguesa Arte Musical, Janeiro-Abril 1999.)
Ao crescer, esta brincadeira acabou, mas descobriu mais tarde um prazer idêntico, durante o período negro, quando passava horas a improvisar ao piano, sozinho ou com um amigo. Ainda criança, havia em frente de sua casa um mercado coberto, com uma animação e uma algazarra incríveis, que ele gostava de ficar a contemplar e a escutar da janela, durante longos períodos. Esta contemplação, segundo ele “vazia e sem objectivo”, retomá-la-ia mais tarde, nos anos negros. Foi cerca dos doze anos que Emmanuel decidiu aprender música, piano sobretudo, que era para ele quase acessível fisicamente, porque apesar das suas mãos desajeitadas, conseguia produzir sons e isso era extraordinário. Na sala de aulas, havia um piano, um colega sabia tocar um pouco, e Emmanuel gostava de experimentar. Quis pois ter um piano. O pai objectou que ele nunca conseguiria tocar, mas a mãe insistiu, dizendo que era muito importante para exercitar as mãos e reeducá-las. O pai acabou por aceitar e Emmanuel conseguiu o seu piano.
Emmanuel foi educado com grande liberdade. Os pais nunca o travaram apesar da sua deficiência, deram-lhe sempre liberdade de ir e vir, e de brincar com os seus camaradas. Confiavam nele e responsabilizavam-no integralmente, aceitando-o tal como era. A mãe tinha aceitado a doença desde o início, quase como uma coisa natural, que fazia parte dele. Além disso, apesar de não se interessarem nada pela cultura, como se ela não existisse, queriam que o filho tivesse estudos. O pai só lera a Bíblia. Tinha partido para a América aos dezasseis anos em busca de fortuna, fugindo à terra, à aldeia e ao moinho paternal. Aí, convertera-se ao protestantismo por rebelião contra o catolicismo da família, tornando-se produtor de próteses dentárias. Regressou sete anos mais tarde, para se instalar como dentista em Lisboa. A mãe geriu durante alguns anos uma loja de moda. Lia com muito interesse as revistas de divulgação médica e, mais tarde, gostava de ler os romances que Emmanuel lhe emprestava quando, com cerca de quinze anos, depois do exame do quinto ano, começou a comprar livros. O pai sempre lhe deu de boa vontade dinheiro para essas compras, mas sem partilhar o entusiasmo.
Como todos os dias lia os anúncios dos jornais, encontrou um professor de piano para o filho, uma francesa de certa idade, que lhe ensinou as notas, mas que nunca lhe queria tocar os trechos que ele tinha que estudar, de tal forma que, ao fim de três meses, ele desistiu.
Contrataram uma outra professora, que tocava também violino e viola, e que ficou com ele durante cinco anos. Estudou assim música dos doze aos dezassete anos e, de forma muito sistemática, solfejo, as oito claves e a teoria.
Com cerca de treze anos, depois de ver um anúncio no jornal de um disco acessível, Emmanuel compra o seu primeiro disco, que ainda hoje guarda, e que contém quatro peças de compositores célebres: a Eine Kleine Nachtmusik de Mozart, a 8ª Sinfonia de Beethoven, a GrandePolonaise de Chopin e a Cavalgada das Valquírias de Wagner. Esta última parecia-lhe a mais estranha, em relação àquilo que, habitualmente, rodeava sem cessar os seus ouvidos. Já anteriormente tinha começado a escutar um pouco de música clássica na rádio, mas solitariamente, quase ciosamente, sem a partilhar com os pais, que no entanto não lhe eram hostis, apenas indiferentes. Afirma ele: “Não queria que se escutasse aquilo sem acreditar, precisamente porque tinha consciência de que era uma coisa sagrada”. Este primeiro disco, ouviu-o muitas vezes.
A professora de piano e o marido eram grandes apreciadores de ópera, deslocando-se mesmo ao estrangeiro para assistir a espectáculos, que ela depois lhe descrevia. Um dia em que ela não pôde ir, deu-lhe o seu bilhete. Emmanuel tinha quinze anos quando viu, pela primeira vez na sua vida, uma sala de ópera, um palco, uma orquestra. Foi no Teatro de S. Carlos, que é uma magnífica cópia do Scala de Milão, e tocava-se nesse dia Hansel und Gretel de Humperdinck. Foi um espectáculo maravilhoso e ele quis logo arranjar uma assinatura. Infelizmente, já estava tudo reservado por vários anos! No entanto, no ano seguinte, Emmanuel conseguiu arranjar uma assinatura no “galinheiro”, através de uma vendedora da loja da mãe, que era sobrinha do chefe electricista do teatro. Manteve sempre essa assinatura até deixar Portugal em 1964, com 23 anos. A partir desse dia, não perdeu nenhuma das óperas apresentadas, que ia ver ao domingo à tarde. Havia doze ou catorze por ano, cada uma tocada duas vezes. De Outubro a Dezembro, eram as óperas alemãs, depois as italianas e as francesas.
No início, Emmanuel não se preocupava em saber quem era o autor, nem quem cantava ou tocava. Da mesma forma que ouvia o seu disco, ouvia e via uma ópera como se contempla um quadro, sem ter a noção que podia haver várias interpretações possíveis de uma mesma obra. Era como um livro ou um filme. A primeira, Hänsel und Gretel, tocou-o verdadeiramente, maravilhou-o, do ponto de vista do espectáculo e da música, gostou de tudo. Fazia o trajecto de eléctrico, na carreira 24 que ainda recentemente existia, levando quase uma hora. Não tinha então qualquer ideia sobre os compositores e os intérpretes, começando por ler o programa e por escutar aquilo que se dizia à sua volta no intervalo, falando um pouco com os seus vizinhos que acabava por conhecer porque, com a assinatura, eram sempre os mesmos. Ouvia conversas que lhe pareciam vir de outro mundo: “Este tenor cantou menos bem que Fulano há dois anos!” – e outras afirmações e comentários que revelavam uma variedade insuspeita de escutas e de discursos.
Rapidamente, após o deslumbramento ainda sem critério perante um espectáculo belo, começou a despontar um sentimento crítico em relação à música. Em muitas óperas italianas, certas passagens agradavam-lhe infinitamente, mas o resto frequentemente o aborrecia. Aquelas que o levavam de uma ponta a outra sem enfado, que tinham uma certa unidade dramática, eram as de Puccini. E depois ficou verdadeiramente fascinado por Mozart, Wagner, Strauss, com Pélleas et Mélisande de Debussy, com encenação e cenografia de Jean Cocteau. Mais tarde, Wozzeck perturbou-o verdadeiramente. Era a primeira apresentação em Portugal de Wozzeck, sob a direcção de Pedro de Freitas Branco, um maestro que Ravel bem conhecera e apreciara.
Tendo-se familiarizado com o Teatro de S. Carlos, assistiu também a todos os concertos que aí foram apresentados. Entrava pela porta de serviço, nas traseiras, ia apertar a mão do chefe electricista e instalava-se num dos pequenos camarotes que existem à boca de cena, lá mesmo em cima, do lado esquerdo do palco, mesmo por cima da orquestra ou do pianista que estavam a tocar no palco.
Durante estes anos da adolescência, Emmanuel frequentou regularmente as aulas de piano, mas não tinha muitas verdadeiras conversas sobre música com a sua professora; era sempre ele que fazia mil e uma perguntas e que queria saber tudo. Quando aos quinze anos quis aprender harmonia, a professora mandou-o a um velho mestre, que lhe deu a impressão de estar ainda mergulhado no séc. XIX, tanto pelo seu aspecto físico como pelas suas maneiras. Durante um ano, trabalhou com este velho que o fazia aprender de cor todos os acordes classificados, sem nunca os tocar, e ele conhecia-os a todos de cor, sem jamais saber a que é que aquilo correspondia.
Depois disso, Emmanuel começou a ter a veleidade de compor, mas abandonou as aulas de harmonia e mesmo as de piano. Foi no último ano do liceu e, depois do exame final, durante o Verão de 1958 em que fez dezoito anos, conheceu um amigo que lia muito, e como era a primeira vez que Emmanuel encontrava alguém da sua idade que se interessava por literatura e arte, tornaram-se muito próximos. Foi o ano do seu fracasso escolar, do estudo solitário, o período negro. Ouvia muita música e lia muitos livros sobre música, e foi nessa época que decidiu tornar-se compositor. O seu grande problema era: como começar e com quem? O seu amigo vinha visitá-lo com frequência e conversavam longamente, evocando um personagem mítico para eles, um compositor português profundamente influenciado por Bartok e Ravel, Fernando Lopes Graça.
Um dia, ao chegar a sua casa, o amigo anunciou-lhe que tinha encontrado uma pessoa que conhecia Lopes Graça: este dirigia um coro, era preciso ir assistir a um ensaio e pedir para lhe falar no intervalo. Este músico pertencia ao Partido Comunista Português e era perseguido pelo regime fascista. O governo tinha suprimido o seu lugar de professor de piano no Conservatório de Lisboa e tinha-o proibido de exercer no ensino oficial.
Emmanuel dirigiu-se pois à Academia de Música, estabelecimento privado onde Lopes Graça trabalhava com o seu coro de amadores, e disse-lhe: “Gostaria de me tornar compositor, mas não sei nada sobre a música do nosso tempo. Poderá aconselhar-me alguns livros ou dar-me aulas?”. “O que é que estudou em termos musicais?” – “Nada!”. Estando então proibido de ensinar, Lopes Graça propôs-lhe que se inscrevesse na Academia para estudar harmonia e contraponto, sublinhando que não se pode compreender a música moderna se não se conhecer a música do passado.
Em Novembro de 1959, Emmanuel inscreve-se na Academia de Música onde irá estudar durante quatro anos com uma professora belga, Francine Benoît, cuja formação na Schola Cantorum de Paris era muito académica, mas que era ela própria uma pessoa extremamente aberta. Iniciava, assim, aos dezoito anos uma primeira formação profissional.
Durante esses anos, Lopes Graça emprestou-lhe muitos livros de música, entre os quais o famoso manual de harmonia de Schoenberg, na edição americana, que ele guardou e estudou durante um ano e meio.
Emmanuel está indeciso e disperso entre as suas diversas actividades, já que se trata também da época dos seus estudos solitários. Depois da sua reprovação na admissão à Faculdade de Medicina, em Junho de 1960, decide reorientar os estudos para as disciplinas literárias que o interessam muito mais, e inscreve-se no curso nocturno para preparar os exames finais de letras, que irá passar brilhantemente, em Junho de 1961, o que lhe permite ter acesso à faculdade sem esse fatal exame de admissão. No final de 1960, nas aulas da noite, um colega de estudo recruta-o para o Partido Comunista, então completamente clandestino, e ei-lo que começa uma formação de militante. Durante esse ano escolar de 1960-1961, ele tinha que preparar num ano os dois anos de letras que lhe faltavam, com as quatro cadeiras principais, inglês, alemão, latim e literatura portuguesa, e tinha que passar! Os dias passavam-se, assim, de uma forma um pouco ritual: de manhã, Emmanuel dormia, depois, cerca da uma da tarde, descia ao café para trabalhar durante seis horas, um estudo interrompido por algumas partidas de bilhar. Este café só era frequentado, das 10 da manhã às 9 da noite, por estudantes; a única mulher era a que estava ao balcão. Um café deste tipo era raro em Lisboa, era mais uma tradição de Coimbra. Às sete e meia, voltava a subir para jantar em casa sozinho, e às oito horas partia para as aulas de onde regressava depois da meia-noite, deitando-se cerca da uma ou duas da manhã.
Passa depois dois anos na Faculdade de Letras, a estudar filosofia grega, filologia inglesa, teoria da literatura e linguística. Mas trabalha sem grande convicção, militando muito a nível sindical.
Ao mesmo tempo, Emmanuel vai duas vezes por semana às aulas de harmonia e de contraponto da Academia de Música. Já tinha ouvido muita música e lido algumas partituras, tanto mais que uma muito antiga editora de Lisboa, a Sassetti, acabava de fechar e de saldar todo o seu stock de partituras de bolso! Assim, conhecia bem as obras musicais até Stravinski, Bartok e, evidentemente, Ravel e Debussy, mas não tinha ainda descoberto a Escola de Viena. Como esta formação especializada chegava tarde, ele sentia-se mais maduro, mais avançado nas suas ideias sobre música do que na sua aprendizagem e, sobretudo, na capacidade de escrever a sua própria música, segundo as suas ideias estéticas. Em casa, sozinho, fazia muitas análises ao piano, e continuava a improvisar durante horas, com aquilo que assimilara, ainda um pouco desajeitadamente, da linguagem de Bartok e de Prokofiev.
Pouco a pouco, Emmanuel começou a fazer regularmente crítica musical, já que a sua professora, Francine Benoît, lhe pedia para escrever e assinar as críticas dos concertos a que ela própria não podia assistir. A sua primeira crítica foi um elogio do pianista Pollini, que tinha então dezanove anos e acabava de ganhar o prémio Chopin de Varsóvia, em 1961.
Depois disso, quando entrou na Faculdade de Letras, existia ainda uma revista cultural mensal de esquerda, já antiga e de grande tradição, a Seara Nova, cujo director lhe pediu para fazer uma crónica dos concertos e uma crítica dos livros sobre música, o que ele fará todos os meses durante dois anos, até à sua partida definitiva de Portugal.
O professor de filosofia que ele tinha tido aos quinze anos era um grande melómano, e ele via-o com frequência nos concertos na época em que era seu aluno, mas depois perdera-o de vista. Um dia, na redacção da revista, o director deu-lhe um livro de René Leibowitz que acabava de ser publicado. Ironia do destino, reparou que a tradução tinha sido feita pelo seu antigo professor, mas que ele tinha traduzido sem conhecer, e sem se documentar, os termos musicais, o que resultava num texto grotesco onde, por exemplo, as semínimas (noires) eram as negras e a celesta (célesta) se tinha tornado Celeste! Emmanuel escreveu um artigo muito irónico e mordaz e o livro teve que ser retirado!
No ano de 1961-1962, um compositor francês, Louis Saguer, um músico muito culto, veio viver para Lisboa durante um ano e deu aulas na Academia. Deu a conhecer a Emmanuel toda a música contemporânea da época e de antes da guerra: a Escola de Viena, Stockhausen, Boulez.
Juntamente com Louis Saguer, a Academia tinha convidado um jovem pianista e compositor português, Jorge Peixinho, que era bolseiro há já cinco anos, e conhecia todo o meio musical internacional, tendo trabalhado com toda a gente: Boulez, Stockhausen, Nono… Era um ano mais velho do que Emmanuel e os dois ficaram amigos.
Durante este período, Emmanuel não compôs absolutamente nada. Quando Louis Saguer partiu, sentiu-se perdido e pediu-lhe que intercedesse junto de Lopes Graça para que este aceitasse dar-lhe aulas. Este pediu-lhe então a pior de todas as coisas: “Escreva uma peça e mostre-ma, senão não podemos trabalhar”.
No Verão de 1962, Emmanuel foi a Helsínquia e a Moscovo durante um mês, convidado pelas Juventudes Comunistas. Um pouco antes, tinha começado a escrever uma peça para piano para impressionar Lopes Graça e, a partir de Dezembro, começou a ter aulas com ele. Saguer tinha deixado Lisboa para regressar a Paris alguns meses antes.
Lopes Graça era o único músico português de envergadura, mas ficou sempre enfeudado à influência de Ravel e, sobretudo, de Bartok. Emmanuel ia a casa dele todas as semanas e, durante o primeiro ano, escreveu três peças: uma para piano, uma para flauta e piano e um quarteto de cordas. Depois disso, o professor aconselhou-o a deixar de compor até adquirir mais técnica. Deixou pois de escrever para trabalhar com ele o contraponto “moderno”.
Do ponto de vista humano, era uma relação simultaneamente muito cortês e amigável de parte a parte, e totalmente gratuita: o mestre nunca pediu qualquer retribuição ao seu aluno.
Emmanuel passou os meses de Fevereiro e Março de 1963 em Paris, um Inverno terrível e glacial, em casa de estudantes portugueses amigos, e ouviu pela primeira vez concertos do Domaine Musical, fundado por Pierre Boulez e Jean-Louis Barrault. Anteriormente, ouvira apenas um único disco trazido de Paris, com a Sinfonia op. 21 de Webern, Kontrapunkt de Stockhausen, extractos de Le Marteau sans Maître de Boulez e Incontri de Nono. Nessa época, ouviu as três primeiras obras vezes sem conta.
No Verão de 1963, Emmanuel foi pela primeira vez a Darmstadt com Jorge Peixinho que lá ia todos os anos. Comprou muitas partituras da Escola de Viena, algumas de Boulez e de Stockhausen e uma de Ligeti. Ouviu muita música, frequentando os concertos todas as noites e, de regresso a Lisboa, sentiu-se mais vivamente consciente da sua falta de conhecimentos. Dirá mais tarde: “Tinha a impressão de que tudo aquilo que tinha pensado sobre a evolução musical já estava feito, como se tivesse inventado uma bicicleta e visse passar, de repente, um avião. Estava na mesma situação em que, quando era adolescente, ouvia os meus vizinhos na ópera falar da música que eu acabava de descobrir”. Em termos de concertos, no entanto, no plano puramente auditivo, o seu gosto era já muito marcado, e não duvidava nunca das suas afinidades estéticas.
O ano de 1963-1964 foi o último passado em Lisboa. Emmanuel já não frequenta a Academia de Música, nem a Faculdade de Letras e abandona o Partido Comunista. Trabalha com Lopes Graça, em casa deste, e com Francine Benoît, em casa dela. Lopes Graça tinha começado a traduzir a Histoire de la Musique, da editora La Pléiade, e tinha-lhe confiado a tradução de alguns capítulos. Mais uma vez, nesse ano Emmanuel nada compôs, mas estudou muito.
No Verão de 1964, faz uma viagem com Peixinho: voltam a Darmstadt, depois vão a Munique fazer um estágio de iniciação à música electrónica dirigido pelo seu futuro professor, Henri Pousseur, e finalmente passam dois meses em Veneza, a frequentar os cursos de artes plásticas e de literatura na Fundação Cini, na ilha de San Giorgio.
Uma flautista holandesa que tinham encontrado em Munique vai buscá-los a Veneza para os trazer para Lisboa, já que tinham projectado dar um concerto de música contemporânea na Juventude Musical. Este concerto teve lugar em Outubro de 1964, com a apresentação, entre outras, de uma peça de Peixinho e uma de Nunes, escrita para a ocasião, para flauta, harpa, contrabaixo e percussão, onde tinha introduzido “todos os ingredientes de escrita recentemente adquiridos.” João de Freitas Branco, crítico emérito, escreveu então que, se não se soubesse que se tratava da sua primeira peça, ter-se-ia a impressão que ele tinha uma grande experiência de música contemporânea. No entanto, Emmanuel queimou integralmente essa peça, pouco tempo depois, em Paris: ela era apenas de circunstância. Já que os diplomas da Academia não eram reconhecidos da mesma forma que os do Conservatório, e que ser o único aluno em composição de Lopes Graça era uma espécie de extravagância, ele tinha esperado que o facto de estar no programa de um concerto da Juventude Musical o ajudaria a conseguir uma bolsa. Esperara em vão.
No início de Novembro de 1964, Emmanuel deixa Lisboa por sete anos, e vai viver para Paris até Setembro de 1965. Durante esse ano, trabalha sozinho num pequeníssimo quarto e lê muito, nomeadamente A la Recherche du Temps Perdu, de Marcel Proust. Exercitou-se então na técnica serial, tal como Boulez a tinha exposto nos seus escritos, e compôs três ou quatro peças como exercícios, os primeiros e os últimos estudos seriais de toda a sua vida. Depois, no final de Setembro, partiu para Colónia para trabalhar com Stockhausen, e também com Pousseur, e ainda com outros compositores que vinham fazer seminários, como Berio, que na altura foi muito afável com Emmanuel, incitando-o a ir visitá-lo sempre que estivesse na Europa, o que ele fez até ao final dos anos sessenta. Berio e Pousseur apoiaram vivamente um segundo pedido de bolsa junto da Fundação Gulbenkian, mas mais uma vez ela não lhe foi concedida. Emmanuel ficou dois anos em Colónia, regressando a Paris regularmente.
Até ao fim da sua estadia em Paris, durante o Verão e o Outono de 1965, escreveu a primeira peça que guardou no catálogo das suas obras: era um trio de cordas, Degrés, terminado pouco depois de Colónia. Durante esses dois anos, escreveu uma peça para grande orquestra, que permaneceu inédita, Seuils, e uma primeira versão do quarteto de cordas que em 1980 se iria tornar Esquisses, mas que então se chamava Le Voile Tangeant. Compôs também uma peça que foi tocada no final dos cursos, infelizmente com algumas folhas fora de ordem! Esta peça era para nove músicos e chamava-se então Degrés 2. Foi depois integralmente reescrita e aumentada em Paris, em 68-69, passando a chamar-se Un Calendrier Révolu. No entanto, permaneceu também inédita.
Entre 1966 e 1967, Emmanuel leu muitas obras de Freud e de Kafka, e releu Proust. Independentemente das interpretações ou das correntes psicanalíticas, que nunca conheceu verdadeiramente, a abordagem de Freud tornou-lhe possível, através da sua própria introspecção, a aceitação de toda a dimensão onírica ou comportamental da sua própria vida. Mais tarde, ao ler as obras de Jung, sugeridas por Marcel Beaufils, interessou-se por todos os elos simbólicos e históricos que ele estabelece entre os diferentes domínios do conhecimento, ainda que no plano da psicologia individual se tenha sentido menos envolvido.
As obras de Kafka, lidas em francês na época, e relidas mais tarde em alemão, fascinaram-no completamente, mas já não consegue reencontrar hoje as ideias e os sentimentos que surgiram aquando da sua descoberta. Em contrapartida, a releitura de Proust é ainda e sempre fértil, em particular as passagens em que o leitor se sente envolvido numa realização artística pessoal, ou seja, quando percebe a forma como a obra se constrói numa dupla dimensão, a cronológica, da vida das personagens, e a da própria visão de Proust, muito mais global e psicológica, da matéria do romance.
Durante os seus últimos cursos em Darmstadt em 1965, Boulez tinha apresentado a Suite Lírica de Berg e estabelecido um paralelo entre esta peça e a obra de Proust, pondo em evidência a presença, em cada uma delas, de uma escrita livre no interior de uma escrita rigorosa. Emmanuel tinha sido sensível a esta dualidade da escrita, em que um modo narrativo rigorosamente ligado aos acontecimentos se abre, de repente, para um espaço diferente, e em que a escrita abandona essa cronologia para criar diversos sentidos extra-temporais, nos modos analítico, simbólico, afectivo, como se já não houvesse a certeza de se estar na narrativa ou no pensamento.
Da mesma forma que toda a obra em construção se submete a esta dupla dimensão, a inspiração que a impele está enfeudada ao duplo movimento da livre imaginação e da realização concreta. Nesse sentido, Emmanuel guardou para sempre gravado na memória os versos do último dos Poèmes Saturniens de Verlaine, Epilogue.
Ah! L’Inspiration, on l’invoque à seize ans!
[…]
Ce qu’il nous faut à nous, c’est l’étude sans trêve,
C’est l’effort inouï, le combat nonpareil,
C’est la nuit, l’âpre nuit de travail, d’où se lève
Lentement, lentement, l’Œuvre, ainsi qu’un soleil!
Libre à nos Inspirés, cœurs qu’une œillade enflamme,
D’abandonner leur être aux vents comme un bouleau;
Pauvres gens! L’Art n’est pas d’éparpiller son âme:
Est-elle en marbre, ou non, la Vénus de Milo?
[…]
Aquilo que preocupava muito Emmanuel, era a distância entre o seu pensamento, a sua imaginação, as suas deduções, e essa falta de uma técnica pessoal que pudesse ligar as suas ideias à escrita musical em linha recta. A verdade é que esse elo nunca passou directamente pela escrita clássica que ele tinha aprendido anteriormente em Lisboa. Como se não tivesse estudado, essa técnica tradicional permaneceu isolada, não integrada como tal no seu pensamento, agindo apenas como um dos elementos do modo como se forjou a sua própria visão da evolução da escrita. Ele considera que a formação baseada unicamente na escrita clássica, mesmo levada ao extremo, o que não foi o seu caso, não pode, não deve ser mais do que um paradigma. Muito menos aspectos desta escrita transpareceriam mais tarde na técnica pessoal que está na base de uma obra, o que não quer dizer que, em diferentes épocas da evolução de um artista, incluindo a maturidade, ele não regresse a aspectos dessa formação, tal como a assimilou por sua própria conta.
No entanto, uma vez este problema resolvido para ele, gradualmente, ao longo do seu trabalho, e de uma forma bastante consciente, a música clássica continuou sempre a enriquecer a sua forma de consolidar o elo entre aprendizagem e originalidade. Durante longos anos, ouvira música de uma forma até excessiva e isso tinha funcionado como uma espécie de prova. Muito mais tarde, quando se viu por sua vez confrontado com a tarefa de ensinar composição, exprimiu esta problemática entre conhecimento e criação num texto escrito em 1984, intitulado Quase Uma Utopia: o paradoxo da originalidade:
“Durante toda a nossa existência enquanto compositores (e não só), produz-se no nosso interior uma espécie rara de contraponto, um contraponto de uma liberdade rigorosa, e de um rigor que, apesar da sua força hierática, não deixa de permitir a eclosão de movimentos inesperados que tornam subitamente livres e imprevisíveis as relações entre as vozes.
Admitamos, para que o possamos seguir facilmente numa primeira escuta, que ele seja a três vozes: um contraponto entre o INATO, o APRENDIDO e tudo aquilo que surge como o AINDA NÃO APRENDIDO. Esta última voz é testemunha de um tempo presente, sob uma forma incessante, e de uma projecção para o futuro, não menos incessante. O APRENDIDO fura, como se fossem ondas, desde o passado até ao presente, e ao mesmo tempo que nos dá um ritmo tranquilizador, faz-nos igualmente sentir uma enorme necessidade de o ultrapassar, de entrar em pé de igualdade num desconhecido que não precisa de ser aprendido para ser possuído. Há momentos em que o APRENDIDO desencadeia em nós uma força contrária à corrente, que nos lança na aventura do inaudito. De regresso, apercebemo-nos de que essa força se limita a lançar-nos numa escuta vertiginosa do cantus firmus que é o INATO, e que este desejo de criar o inaudito não é senão uma necessidade irresistível de cristalizar em som aquilo que há de mais original e autêntico no mais íntimo de nós mesmos. Mas, para lá da vertigem que esta escuta por vezes nos provoca, apercebemo-nos também que a originalidade precisa de ser mantida, de ser constantemente cultivada, trabalhada. Só pode atingir a sua realização suprema no interior desse misterioso contraponto. Não é temporal, mas a temporalidade das outras duas vozes é-lhe necessária para que possa testemunhar plenamente o seu poder de abolir a cronologia.”
Em Agosto de 1967, Emmanuel abandona os cursos de Colónia, regressa a Paris e reinstala-se num pequeno quarto, sozinho, sem qualquer contacto com músicos nem com a vida musical, embora frequente regularmente os concertos. Durante estes meses solitários, ouve e perscruta de forma obsessiva a Sonata de Liszt e as Metamorfoses de Strauss. O seu ritmo de vida tinha-se tornado muito mecânico, mas ele tinha necessidade disso, de tal forma as condições materiais da vida em Paris eram duras, quando comparadas com as da Alemanha. Levantava-se cerca da uma da tarde, trabalhava sozinho, depois saía às oito da noite para ir a pé a Saint-Germain-des-Prés, jantava sempre no mesmo pequeno restaurante, muito barato, e regressava por volta das onze ou meia-noite. Trabalhava ainda até às quatro da manhã e deitava-se pouco antes do amanhecer. Esta vida ritualizada protegia-o de uma divagação deprimente, já que não tinha quaisquer deveres a ligá-lo ao que quer que fosse, estudo ou instituição. Foi nesse pequeno quarto, onde viveu durante oito meses, que desenhou um grande número de figuras geométricas, nos cartões das tabletes de chocolate que consumia em grandes quantidades. Ao desenhar estas figuras, confrontava-se conscientemente com questões de equilíbrio formal equivalentes às suas reflexões no plano musical.
Nessa época, anota sumariamente as suas impressões sobre os cursos de Colónia:
“Primeiro impacto com a personalidade de Stockhausen, uma semana de ensaios de Momente e o seu resultado em Donaueschingen.
O contacto pedagógico e humano com Henri Pousseur, que está ligado à minha primeiríssima obra, isto é, à primeira que decidi guardar: Degrés.
Primeiro encontro com Berio.
Visages com Cathy Barberian, cujas aulas sobre interpretação vocal me voltam à memória.
Impacto. Contacto. Reencontro.
Geord Heike: o meu profundo reconhecimento pelos seus ensinamentos que me permitiram espreitar a imensidade da floresta virgem (ou quase) onde a fonética e o resto do universo sonoro se confundem. Apesar de todo o encorajamento que recebi por parte de Heike para iniciar um trabalho composicional nesse sentido, não era, para mim, o momento certo – e continua a não o ser agora - para empreender um tal trabalho.
As aulas de direcção de Herbert Schernus – maestro titular dos coros da Westdeutsche Rundfunk – com quem pude trabalhar em partituras como Momente, Microphonie 2 e a Histoire du Soldat. Eu, que seria a última pessoa da terra a desejar algum dia vir a ser maestro, tive nele o meu verdadeiro professor de solfejo.
Aproveitei bem a ausência quase total de participantes nos cursos de Georg Heike e de Herbert Schernus.” (Paris, 1967)
No ano seguinte, o pai compra-lhe um pequeno apartamento na rue Tournefort e, devido a um problema de sobrevivência económica, já que não pode obter nenhuma bolsa enquanto jovem compositor, Emmanuel inscreve-se no CNSM (Conservatoire National Supérieur de Musique) e em 1970 obtém a sua primeira bolsa de quatro anos do Ministério da Cultura português. Frequenta os cursos de escrita e de análise musicológica, como se tivesse necessidade de se proteger, de olhar para as suas lacunas, de se confrontar com a sua própria escrita. Recebe o primeiro prémio em estética em Junho de 1971, e obtém uma equivalência para se inscrever num doutoramento na Sorbonne, com um orientador que o apoiou extraordinariamente, tanto do ponto de vista humano como musical, Michel Guiomar.
Apesar da sua tese ter como tema principal a última obra de Webern, a Segunda Cantata, Emmanuel tinha escrito uma longa introdução em duas partes, a primeira sobre a história da linguagem musical até Webern, e a segunda sobre as mudanças sofridas pela expressão artística e pelas técnicas do início do século, sobretudo em Kandinski, Klee, no movimento Bauhaus e em Der Blaue Reiter. Foi, aliás, numa parte destes elementos que ele se baseou para escrever em 1997 um estudo sobre os textos de Kandinski.
Na primeira parte, Emmanuel Nunes passa em revista a evolução, ao longo de toda a história da música ocidental, das relações entre os diferentes parâmetros musicais (altura, ritmo, intensidade, timbre). A sua análise, ainda que sucinta, obstina-se em defender pontos de vista que, inequivocamente, usurpam as suas concepções enquanto compositor e os seus escritos até essa altura. É assim que se pode ler:
“Assinalarei para cada dimensão um conjunto de tendências que marcam a evolução do sistema tonal, e de resto a sua explosão. […] A progressão de um conjunto de tendências não se faz de uma forma linear e paralela à cronologia histórica. Sem excessiva abstracção, poderíamos dizer que todas as fases de cada tendência, e todas as tendências, coexistem em cada momento da evolução da música tonal, mas em doses diferentes. O mesmo se passa com as diversas modalidades de integração, a partir do momento em que se encara esta evolução como um percurso sinuoso, mas irreversível, em direcção à sua própria explosão.”
Mais à frente, tentando clarificar a sua abordagem à obra de Webern, prossegue:
“Todo este dinamismo multi-direccional do futuro musical e da sua percepção, exigem que nos debrucemos prioritariamente sobre o domínio poético. O espaço musical será o limite para o qual tenderá a nossa investigação, no sentido em que cobre, ultrapassando-os, as manobras reais, a vida e o comportamento de todas as dimensões que se manifestam numa obra, quer dizer, o resultado de um acto composicional para sempre irrecuperável na sua integralidade.” Durante esses três anos, de 1967 a 1970, Emmanuel trabalha só. Alguns músicos franceses que conhecera em Colónia incitam-no a ir bater a várias portas, grupos, pessoas, para ir mostrar a sua música, o que ele acaba por fazer. Por exemplo, com Diego Masson que tinha fundado o grupo Musique Vivante, ou Marius Constant que dirigia o grupo Ars Nova, ou ainda Gilbert Amy no Domaine Musical. Mas nenhuma destas abordagens acabou alguma vez num concerto. Assim, até 1974, Emmanuel não teve nenhuma vida pública como compositor em Paris.
No entanto, é nesta época que compõe as Litanies du Feu et de la Mer I, em 1969, e II, em 1971, peças para piano, sobre as quais escreve:
“Um universo harmónico muito exclusivo – quer dizer, que se recusa a relacionar-se com tudo aquilo que não é capaz de integrar ou de relativizar em relação a si mesmo – impôs-se-me desde o início. Quase não foi preciso procurá-lo. Uma realidade não menos exclusiva era a do piano, já que não se tratava de todo de me servir dele, mas de o servir, de ser capaz de o revelar.” (Programa do concerto de 20 de Maio de 1976, na Fundação Gulbenkian, em Paris.)
Foi também em 1970 que, pela primeira vez, a Fundação Gulbenkian contactou Emmanuel Nunes e lhe propôs uma encomenda. Esta viria a ser Purlieu, para 21 cordas, retiradas da orquestra mozartiana da Fundação, que ele não queria utilizar tal como estava. Esta obra foi tocada em concerto na Fundação, em Lisboa, em Dezembro de 1971. Era a primeira vez que ouvia tocar a sua música enquanto compositor e, em sete anos, era também a primeira vez que regressava a Portugal, à excepção de uma breve visita, quatro meses antes, para o funeral do pai, em Julho de 1971. Tinha então trinta anos.
Para esta importante primeira estreia da sua música, Emmanuel assistiu aos ensaios, ouviu, trabalhou com os músicos, mas o concerto em si deixou-lhe uma impressão estranha, como se tivesse durado muito tempo e não tivesse ouvido nada, um fenómeno profundamente ligado à total ausência de experiência auditiva da sua própria música, uma espécie de medo do palco nos ouvidos, que o impediu de ouvir de forma objectiva. Uma coisa destas nunca antes lhe tinha acontecido, e foi por isso que não a esqueceu. A mãe assistiu a este concerto, e depois disso, passou a frequentar todos os concertos que o filho dava em Lisboa.
A partir dessa altura, Emmanuel teve encomendas regulares da Fundação Gulbenkian e, dois anos mais tarde, do Ministério da Cultura francês, mas nunca quis aceitar várias encomendas ao mesmo tempo ou com efectivos instrumentais impostos. Havia uma profusão de encomendas possíveis para um ou dois instrumentos e, querendo, era possível fazer três ou quatro por ano! Em França, nessa época, a conjuntura da política musical permitia a quase todos os compositores terem um ano uma encomenda do ministério, no ano seguinte uma encomenda da Radio France, e depois todos os solistas queriam também uma peça para eles! Devido à sua forma de trabalhar, Emmanuel nunca pôde fazer isso de forma sistemática já que, para cada peça, era guiado por imperativos de efectivo instrumental que ele fazia questão de não alterar nunca por razões materiais exteriores aos seus projectos.
Em 1972, deixa o CNSM e começa a preparar a tese. Recebe uma segunda encomenda da Fundação Gulbenkian, Dawn Wo, para treze sopros. Na primeira peça tinha escolhido apenas cordas, na segunda, escolheu os sopros, mais uma vez retirados da orquestra mozartiana da Gulbenkian.
Depois da encomenda de Purlieu em 1970, um colega de curso de Colónia, Gérard Masson, apresentou Emmanuel Nunes a um amigo, André Jouve, que trabalhava na altura nas edições Jobert. Foi por seu intermédio que Emmanuel entrou para esta editora, que publicou Purlieu para o concerto de Lisboa. André Jouve tornou-se um amigo, o único parisiense que o acolheu e recebeu amigavelmente em sua casa, e foi na altura a única família que ele frequentou em Paris.
No final de 1972, André Jouve ocupa-se da edição de Dawn Wo e desloca-se a Lisboa para assistir à estreia da peça, em Fevereiro de 1973. Depois do concerto, enquanto jantam juntos, confidencia a Emmanuel que vai deixar as edições Jobert para se tornar director artístico da Orchestre de chambre de la Radio (ORTF), e também responsável por uma nova série de concertos: Perspectives du XXème siècle. Diz-lhe também que tem a intenção de lhe consagrar um concerto e de lhe fazer uma encomenda, que estaria prevista para 1974. Estavam programadas duas peças: Purlieu, e a nova peça para a qual Emmanuel lhe tinha pedido o coro da Radio France, porque queria muito aplicar as suas ideias sobre as relações entre fonética e música, que ambos tinham frequentemente debatido. Mas a obra não pôde ser apresentada por razões sindicais, já que requeria 7 grupos de 4 cantores e cada voz, mesmo quando as notas eram as mesmas, tinha sílabas diferentes. Recebeu uma carta do responsável administrativo do coro, dizendo-lhe que, se assim fosse, as 28 vozes queriam todas ser pagas como solistas, o que implicava um orçamento exorbitante, e portanto anulava a encomenda e o concerto!
Na sua carta de resposta, de 10 de Abril de 1974, o compositor, depois de ter descrito o grau de dificuldade de cada parte da obra, escrevia: “Posso afirmar que não é de maneira nenhuma mais fácil cantar correctamente um madrigal de Monteverdi!” Esta peça coral iria tornar-se Voyage du Corps, e só foi estreada em 1975, no Festival de Royan, pelo Ensemble vocal de Pau, dirigido por Guy Maneveau.
O primeiro concerto de Emmanuel Nunes em Paris realizou-se pois, em 1974, na velha sala Pleyel, onde a orquestra de câmara da ORTF interpretou Purlieu. Foi na época em que a Casa Sassetti, reconvertida em editora de discos, decidiu gravar em Paris o seu primeiro disco, com Degrés e Impromptu pour un Voyage I, interpretados pelo trio de cordas francês, o Trio Debussy, com a participação do trompetista Jean-Jacques Greffin. Foi Michel Guiomar que redigiu o texto para o disco e, a propósito de Degrés, nota:
“Este trio, escrito em 1965, quando Emmanuel Nunes era ainda discípulo de Stockhausen em Colónia, revela simultaneamente certas filiações da sua estética e as premissas que as suas primeiras obras continham já, e que hoje se realizam plenamente. Por um lado, o conhecimento absoluto de Berg e a afinidade com a austeridade de Webern, com o seu lirismo levado ao extremo, com o seu equilíbrio entre os instrumentos, num contraponto de enunciado essencial; por outro lado, uma riqueza pessoal de entoações e de transmutações de influências mais profundas, a propósito das quais deveríamos talvez invocar aqui a radicação em certos grandes pontos de referências históricas do pensamento de Emmanuel Nunes.”
Foi também em 1974 que compôs Impromptu pour un Voyage II, trio para flauta em sol, viola e harpa, que ele apresenta desta forma:
“Desde o início da montagem da obra, cada intérprete deve observar com atenção os limites prescritos pela partitura, no interior dos quais poderá “construir” a sua liberdade de acção. Todas as partes do texto foram concebidas e formuladas de forma a que o intérprete, ao escutar-se a si próprio tocar, possa aí encontrar em cada momento uma resposta inequívoca à questão: “Aquilo que eu estou a tocar, é permitido?” Esta questão recorta muito evidentemente todas as dimensões sonoras e a sua utilização.” (Programa do concerto de 20 de Maio de 1976)
Esta dimensão, que dava tanta importância à improvisação, presente também em Impromptu pour un Voyage I e The Blending Season, já não aparece nas obras seguintes.
Durante esses anos de 1974 e 1975, Emmanuel interessou-se muito pela filosofia hebraica, lendo a Bíblia e Martin Buber, cujo pensamento poético o tocava particularmente. Estes textos estabeleceram uma ponte com as leituras feitas durante a sua passagem pelo CNSM, em casa de Marcel Beaufils, como Mircea Eliade, ou André Schaeffner, mais ligado à música e à mitologia sonora, assim como a certos aspectos da música extra-europeia.
No pensamento hebraico, tal como o encontrou em Buber, Emmanuel foi sensível à ideia de que, por um lado, não se pode ter acesso a uma revelação sem ensinamento, e que, por outro lado, não é só o ensinamento que conduz à revelação, mas que há sempre um salto. Em 1977, escreverá num auto-retrato:
“A composição é um combate contra o silêncio, contra o não-sonoro. O silêncio é tudo aquilo que escuto em mim e que, no entanto, não se pode tornar música. E seria ideal se, através de uma perfeita ‘capilaridade’ entre todos os estratos da minha consciência e do meu inconsciente, o meu acto de composição ficasse livre da contingência da minha existência cronológica.”
E citará Buber:
“Fica a saber que cada palavra é uma forma perfeita e que é preciso estares com toda a tua força no seu interior.” (Publicado no programa das Donaueschinger Musiktage de 1977.)
São influências que permanecem nele sem forçosamente virem à superfície com clareza. A revelação para ele não foi a de Deus já que, no pensamento judeu, o ensinamento vai sempre nesse sentido, mas o eco da sua própria experiência de aprendizagem, que ele exprime desta forma:
“Quando me meto a aprender qualquer coisa, há sempre um momento em que vejo isso como um salto, onde de repente sei mais do que já aprendi, como se um mundo de ideias se abrisse, sem que cubra aquilo que já sei, e tenho que voltar a trás para aprender outras coisas que faltam. Neste processo, seria mais uma síntese que levaria à análise, do que o contrário. Não me importo de brincar ao aprendiz de feiticeiro, na condição de ter a certeza de me tornar mestre antes que tudo pegue fogo!”
Em Abril de 1975, Emmanuel foi convidado pela primeira vez para o Festival de Royan, onde duas das suas peças foram estreadas: Omens I e Voyage du corps. De regresso a Paris, à rue Tournefort, durante o Verão e o Outono de 1975, reescreve Omens que se torna Omens II, deixando a primeira de existir. Depois, até Dezembro de 1975, compõe Minnesang, peça para 12 vozes mistas a cappella, que foi estreada em Paris, em 1981, pelo Groupe Vocal de France, dirigido por John Alldis.
“Desde 1974 até ao Outono de 1975 – altura em que empreendi as primeiras diligências que iriam levar à composição de Minnesang – a leitura de Jacob Boehme foi um dos meus centros de gravitação, simultaneamente o mais absorvente e o mais afastado das minhas preocupações estritamente musicais.”
Com efeito, os textos de Minnesang pertencem a diversas obras de Jacob Boehme estudadas numa antologia publicada sob a direcção de Charles Waldemar (Jakob Böhme, der schlesische Mystiker, Goldmanns Gelbe Taschenbücher, 1959). A tradução, um pouco modificada, foi tomada de empréstimo a Louis-Claude de Saint-Martin nas seguintes reedições: L’Aurore naissante ou la racine de la philosophie, de l’astrologie et de la théologie, Archè, 1977; De la triple Vie de l’Homme, selon le mystère des trois principes de la manifestation divine, écrit après une élucidation divine, Éditions d’Aujourd’hui, 1984; Quarante questions sur l’origine, l’essence, l’être, la nature et la propriété de l’âme, et sur ce qu’elle est d’éternité en éternité, Arma Artis, 1984. (O texto completo de Minnesang e todas as referências bibliográficas foram publicados no programa do Festival de Outono em Paris, de 18 de Outubro de 1996.)
Foi também a partir de 1976 que Emmanuel começou a dar alguns concertos em Paris. Tristan Murail era, na altura, director do Itinéraire, e depois de ter ouvido, em Royan, Voyage du corps, programou e estreou nos concertos do Itinéraire, até 1978, obras como Dawn Wo, Nachtmusik I, The Blending Season, num teatro perto das Arts et Métiers – o Carré Sylvia Monfort. Entre 1975 e 1978, irá dar concertos em França, na ORTF, assim como com o Itinéraire e o Ensemble Vocal de Pau.
Quando Luís Pereira Leal tomou a direcção do serviço de música da Fundação Calouste Gulbenkian, em Lisboa, instaurou-se um ritmo regular de encomendas e de concertos, motivados por um interesse genuíno e por um conhecimento real da sua música. Na programação dos Encontros de Música Contemporânea que decorriam todos os anos em Lisboa, em Maio, foram apresentadas várias retrospectivas das obras de Emmanuel Nunes. Há vinte e cinco anos que Luís Pereira Leal defende a sua obra e ao longo do tempo foi nascendo entre eles uma amizade feita de uma afinidade pessoal que ultrapassa completamente as suas funções respectivas, como compositor e director musical. A partir de 1982, Emmanuel Nunes passou a ser regularmente convidado a dirigir seminários de composição na Fundação Gulbenkian em Lisboa.
No final de 1975, a Fundação Gulbenkian faz mais uma encomenda a Emmanuel Nunes, para uma orquestra com um efectivo semelhante ao de Fermata, composta em 1973 e retirada do catálogo: orquestra com sopros e metais a dois, piano, harpa, percussões, cordas e fita magnética. A estreia deveria ser em Lisboa, mas teve que ser adiada por duas vezes, porque ele não conseguia acabar a partitura. Tratava-se de Ruf, “apelo” em alemão. Em Janeiro de 1977, ele escreve:
“Desde a primeira gestação da matéria de base (possuindo já uma vida corporal e psiquicamente sonora) até à conclusão da partitura, recusei qualquer princípio de desenvolvimento baseado na expansão ou explosão de uma forma inicial destinada a preencher um tempo que, à partida, lhe era estranho. Cada entidade (existindo através de um ou de vários parâmetros) devia actualizar desde o nascimento a integralidade da sua vida, guardar intacta a sua identidade e morrer temporariamente ou definitivamente sem qualquer sinal de usura. Um grau superior de complexidade só podia pois resultar da concomitância num mesmo espaço sonoro de várias entidades, como uma espécie de contraponto de vidas irredutíveis.
O acesso a uma tal forma de vida (expressão utilizada aqui no sentido que lhe pode dar, por exemplo, um biólogo ou um mineralogista) teve por origem, em mim, o conhecimento progressivo, ao longo destes dois últimos anos, daquilo a que chamaria a génese e a motivação primordial do Apelo. A trilogia Apelante-Apelo-Apelado pode ser reduzida no tempo, e por intermitências mais ou menos longas, a circuitos fechados de dois, de onde o terceiro é banido: a união Apelante/Apelado exclui o Apelo. O Apelante, escutando incessantemente o Apelo, esquece a trajectória em direcção ao Apelado, identifica-se com este último ou quebra o seu impulso para ele. O elo Apelo/Apelado permanece para o Apelante um mistério. Como se nos obstinássemos em dividir indefinidamente 2 por 3.
O Apelo está presente em todas as manifestações da Matéria e do Espírito, emana delas sob uma multiplicidade de rostos, mas encontra talvez no SOM a encarnação última do seu verbo. (…)”
Ruf foi dedicada ao compositor vietnamita Ton That Tiêt, e foi estreada, por iniciativa de Harry Hallbreich, no Festival de Royan, na Páscoa de 1977, pela orquestra SWF de Baden Baden, sob a direcção de Ernest Bour. Foi o primeiro contacto de Emmanuel com este maestro, uma relação de início difícil mas que, progressivamente, se transformou numa grande amizade. O concerto teve um sucesso extraordinário. Depois disso, Ernest Bour e a orquestra quiseram tocar Ruf no Festival de Donaueschingen, onde a peça foi apresentada em Outubro de 1977. Joseph Häusler, enquanto foi director artístico deste festival, programou diversas obras de Emmanuel Nunes, sendo aí estreadas Nachtmusik II, em 1981, e Wandlungen, em 1986. Também o director da rádio de Berlim na altura, Peter Bockelmann, depois do concerto de Royan, lhe perguntou se aceitava passar um ano em Berlim, como bolseiro da Deutscher Akademischer Austausch Dienst. E foi assim que Emmanuel partiu para Berlim no ano seguinte, em Outubro de 1978.
Nesse ano de 1997-78, Emmanuel ficou pois em Paris, onde deu os seus últimos concertos com o Itinéraire, tendo estreado Nachtmusik I e a última versão de The Blending Season. Além disso, reescreveu cerca de 200 páginas de Seuils, peça inédita para grande orquestra.
Em Outubro de 1978, Emmanuel Nunes parte pois para Berlim onde, em Janeiro de 1979, nascerá a sua filha Martha e onde passará catorze meses durante os quais, embora componha algumas peças específicas, como Einspielung I para violino, a primeira parte de Tif’Ereth e Chessed I, trabalhará essencialmente no desenvolvimento de métodos, de estratégias, de relações que estarão presentes em todas as obras do ciclo a que ele chamou A Criação e que comporta actualmente mais de vinte de peças. De uma forma diferente, vai ser de novo interiormente confrontado com fases de reajustamento entre esta colocação geral e “anónima” de toda a espécie de ideias e de métodos e a sua concretização nesta ou naquela obra. É, num plano completamente diferente, o mesmo questionamento que anteriormente se colocara entre a sua formação musical e as suas ideias criativas.
Joseph Häusler queria que Emmanuel voltasse ao Festival de Donaueschingen com uma encomenda do SWF. Como tinha a intenção de prosseguir a sua ideia de espacialização de um efectivo orquestral, a criação daquilo que iria de facto ser a primeira parte de Tif’Ereth foi decidida para o Festival de 79. As condições acústicas da sala onde o concerto deveria ter lugar eram particularmente propícias, e além disso era mais uma ocasião para Emmanuel trabalhar com Ernest Bour, que devia dirigir a orquestra pela última vez. Começou a escrever a peça mal chegou a Berlim, mas o seu trabalho ganhou uma tal amplitude que os copistas se viram impossibilitados de cumprir os prazos, e ele foi obrigado a anular o concerto, que foi adiado para o ano seguinte. Entretanto, Ernest Bour tinha partido, a administração do SWF quis impor dois outros maestros, e o compositor acabou por recusar a estreia da obra. Acabaria por ser uma outra peça, Nachtmusik II, a ser encomendada e estreada no Festival de Donaueschingen, em 1981.
No Outono de 1979, Emmanuel fez uma viagem a Israel, por iniciativa do maestro chileno Juan Pablo Izquierdo, na época maestro residente da Orquestra Gulbenkian, com o qual travara amizade, e que dirigia também com regularidade em Israel. Era amigo da directora e fundadora do Festival Testimonium, a escritora Recha Freier e, nesse ano, tendo que dirigir uma parte do festival, quis que uma obra de Emmanuel fosse estreada nessa ocasião. O compositor encontrou-se em Paris com a Senhora Freier, que lhe pediu para ter em atenção um texto que ela lhe iria enviar, por ela escolhido, extraído do Zohar.
Esta peça viria a ser Chessed I e seria apresentada em Jerusalém e em Tel Aviv, em Outubro de 1979. O Le Monde de 5 de Novembro de 1979 publica uma apreciação da obra, pela pena de Jacques Longchamp:
“A obra de Emmanuel Nunes (português de trinta e oito anos que é uma das revelações destes últimos anos) sobre La Mort du Rabbi Simeon bar Yohai, ainda que puramente sinfónica, penetra no coração desse belo texto extraído do “Livre du Splendeur” (fim do séc. XIII), cheio de misticismo, de luz e de serenidade. Quatro reduzidos grupos de instrumentistas (cordas, flautas e clarinetes), colocados a alguma distância uns dos outros, tecem uma grande tapeçaria contemplativa feita de fios entremeados de cores subtis, cheia de cantos de pássaros, de raios de luz fosforescente, de pulsações graves. Uma dialéctica de meditação puramente interior, onde cada som vive e vibra em simpatia com os outros, emergindo e fundindo-se no colectivo, produz uma espécie de irradiação rara, de graça musical profunda e comovente.”
No final de 1979, Emmanuel deixa Berlim para ir viver perto de Colónia, onde permanecerá até 1992, ainda que mantendo um contacto estreito e permanente com a vida musical francesa.
Em Abril de 1980, a série de concertos Perspectives du XXème siècle na Radio-France, cujo produtor era Alain Bancquart, consagra-lhe um dia, em que são tocadas várias das suas obras, entre as quais Ruf, seguido de A Canção da Terra de Mahler. Numa entrevista com Alain Bancquart, Emmanuel dizia então:
“Considero a minha vida de compositor como um percurso iniciático. […] A propósito de Ruf e do conjunto da minha obra, gostaria de dizer que nunca trabalhei na contingência histórica. Mesmo na altura em trabalhei e analisei as obras e os escritos de Pierre Boulez, não tinha qualquer problema de relação estética ligada à técnica serial ou não serial. Só posso conceber uma única posição intemporal em relação a qualquer tipo de música. Ouço muita música de todas as épocas e capto constantemente correntes subterrâneas ao longo da história, que não são nunca ou quase nunca aquelas que se encontram nas análises. Essas correntes parecem-me apagar o tempo histórico.”
Sob proposta de Alain Bancquart, o Ministério da Cultura francês atribui-lhe em 1980 uma bolsa de criação. Para a primeira digressão do Ensemble Intercontemporain em Portugal, recebe uma encomenda conjunta do EIC e do ministério. Musik der Frühe, para dezoito instrumentos, será estreada em Lisboa, a 30 de Maio de 1980, sob a direcção de Peter Eötvös. Foi depois revista em 1984 e 1986, e apresentada em Frankfurt, a 26 de Abril de 1987, pelo Ensemble Modern e Ernest Bour.
No ano seguinte, em 1981, Alain Durel convida-o para o Festival de La Rochelle, onde são tocados Nachtmusik I, pelo Ensemble Intercontemporain, e os três Einspielungen. Gérad Condé escreverá então no Le Monde:
“De Emmanuel Nunes, descobrimos as três partes de Einspielung, encomendadas pela Fundação Gulbenkian. A primeira, para um único violino (1979), estreada por Charles Frey, articula-se em torno de um ré grave, presente do início ao fim da composição e a partir do qual se elabora uma verdadeira polifonia, segundo um processo bastante análogo, para o ouvido, àquele que Bach utilizou nas suas Suites: a melodia segrega uma polifonia, através da persistência ou do retorno a certas alturas. Einspielung II, para violoncelo, que já tinha sido tocada por Alain Meunier na Radio France (Le Monde de 25 de Abril de 1980), apresenta-se de uma forma muito diferente: começa por uma sucessão de traços bastante difíceis de ouvir, mas que gradualmente se vão inscrevendo numa harmonia cada vez mais envolvente, e até consonante, sendo os dois pólos de atracção o dó grave e o lá agudo. Finalmente Einspielung III, para viola, interpretado por Gérard Caussé, toma como centro de gravidade o sol da terceira corda do instrumento, mas escapa a uma descrição tão redutora; a sua especificidade torna-se mais clara quando em oposição às outras duas partes. No entanto, aquilo que chama a atenção é a grande parte reservada ao registo grave (o mais sonoro) do instrumento, e que actua como contrapeso de certas passagens de grande virtuosismo no agudo.
Estes três solos, em que nenhum é de modesta dimensão, têm em comum uma utilização absolutamente clássica dos instrumentos, em oposição a uma tendência que parecia irreversível. Fazendo-os soar de acordo com o seu destino primeiro, Nunes devolve-lhes esse calor e essa qualidade de timbre, que por vezes julgamos incompatíveis com a escrita contemporânea.”
É também em 1981, depois da estreia de Nachtmusik II, para orquestra, no Festival de Donaueschingen, pela orquestra SWF de Baden Baden dirigida por Kasimir Kordj, que Emmanuel começa a composição de Vislumbre, peça para coro misto, sobre uma quadra de Mário de Sá-Carneiro, que foi interrompida, e depois concluída em 1986. Seria estreada em Maio desse mesmo ano, em Lisboa, pelo coro Gulbenkian dirigido por Fernando Eldoro. Eis o poema que serviu de base a esta obra:
Vislumbre
A horas flébeis, outonais –
Por magoados fins de dias –
A minha Alma é água fria
Em ânforas d’Ouro… entre os cristais…
Em 1982, uma nova peça, Grund, uma encomenda do Ministério da Cultura francês, fica concluída. Emmanuel descreve-a assim:
“Grund, para flauta alto solo e oito flautas alto e/ou baixo pré-gravadas, constitui a décima primeira de uma família de obras – “A Criação” – que iniciei em 1978. Trata-se de uma polifonia pensada a partir dos modos de interpretação actuais e dos seus constrangimentos sonoros. A peça impõe-se como o estudo de uma linguagem coerente construída sobre uma intersecção de exigências da escrita e das limitações (parâmetros de liberdade) das novas técnicas.
Como em qualquer polifonia, a dimensão rítmica tem um valor primordial. […]
O aspecto da repetição, e a recorrência a diferentes formas ao longo da peça, conduzem a um resultado musical que nada tem a ver com nenhum dos “ramos” da música repetitiva, cuja estética e postulados intelectuais me são totalmente estranhos. Sempre me surgiram como máscaras carnavalescas das Grandes Músicas de outras partes (Índia, Bali, etc.) […] Penso, que em todos os tempos, uma certa imobilização desta ou daquela dimensão do discurso musical e uma incessante adequação deste aos diferentes graus de mobilidade desta ou daquela levam a que, entre estas dimensões, se dê uma profunda transformação das relações de força, de que um dos aspectos mais importantes é a mutação de responsabilidade de uma dimensão numa outra, no que diz respeito ao seu papel na concretização daquilo a que chamei o alcance teleológico do gesto musical.”
A partir desta altura, Philippe Albéra, fundador e director artístico do Ensemble Contrechamps, de Genebra, contribuiu grandemente para dar a conhecer a música de Emmanuel Nunes. Convidou Pierre-Yves Artaud para ir a Genebra para a estreia de Grund, peça para flauta e fita magnética de oito pistas (oito flautas pré-gravadas), a 17 de Janeiro de 1983.
Em 1983, André Jouve, sabendo que Emmanuel queria prosseguir a escrita de Tif’Ereth, propõe-lhe integrar a peça nas comemorações do ano Bach, em 1985. Foi graças a ele que a União Europeia de Radiodifusão fez a encomenda para a totalidade da peça, mas para Emmanuel esta obra ficaria para sempre incompleta.
Depois de concluir a segunda parte de Tif’Ereth, no Outono de 1985, Emmanuel Nunes, a convite de Pierre-Yves Artaud, dá um curso de uma semana no Ircam, para o quarto estágio do Atelier de Recherche Instrumentale. Este curso, intitulado “A atitude instrumental”, abordava, entre outras, a ideia de um certo número de paralelos entre a atitude interpretativa e a atitude composicional, as suas projecções no tempo, a sua teleologia. Além disso, acentuava a sua convicção de que a COMPLEXIDADE ACÚSTICA não desencadeia nunca por si só a COMPLEXIDADE MUSICAL.
Tif’Ereth, peça para seis instrumentos solistas e seis grupos orquestrais, dirigidos por dois maestros, foi pois estreada em Paris, no âmbito dos concertos da União Europeia de Radiodifusão, no dia 9 de Dezembro de 1985. Emmanuel Nunes, numa tripla homenagem, escreveu a sua obra “para os trezentos anos do nascimento de João Sebastião Bach, os cem anos do nascimento e os cinquenta anos da morte de Alban Berg, e o sexagésimo aniversário de um compositor vivo”. Muitos anos mais tarde, ele esclareceria que se tratava de Pierre Boulez.
Na sequência da primeira execução de Tif’Ereth em Itália, em Turim, o musicólogo Massimo Mila escreveu no La Stampa em Maio de 1987:
“A impressão de assombrosa grandeza e, acima de tudo, de originalidade, produzida no ano passado por Ruf, é plenamente renovada. […] Quando escutamos Nunes, esquecemo-nos de todas as “posições” que disputam o campo da música contemporânea. Expressionismo, dodecafonismo, tonalidade, atonalidade, politonalidade, todas se tornam expressões vazias de sentido. Há, pelo contrário, uma impressão de grandeza, de positividade elementar, de força […]. Serão precisas muitas dezenas de anos para trazer à luz os segredos estruturais desta música. No entanto, gostaria de arriscar um início de interpretação. O que é que tocam os instrumentos de Nunes? Tocam exactamente aquilo que está na sua natureza tocar. Não estão lá, como é costume, para “traduzirem” um pensamento musical, estão lá simplesmente para tocarem, livres e activos. Daí, a impenetrável naturalidade deste compositor excepcional, excepcional porque não se parece com ninguém.”
Emmanuel regressa a Darmstadt em 1986, pela primeira vez desde os seus tempos de estudante, e a última até agora, com a equipa do Ircam, para dirigir seminários de composição. Nesse mesmo ano, é convidado para dar aulas na Musikhoschule de Freiburg in Breisgau, que abandonará em 1991, em desacordo com a nomeação do novo director do departamento de música contemporânea.
Pela primeira vez, Emmanuel Nunes, Ernest Bour e o Ensemble Modern vão reunir-se para trabalhar na criação de Wandlungen, cinco Passacaglie para vinte e cinco instrumentos e electrónica em tempo real ad libitum, no Festival de Donaueschingen de 1986. A peça é dedicada ao compositor português João Rafael; o título é uma palavra alemã que contém a ideia de transformação, de mutação. Num texto intitulado “Le banissement du gris” (“O cinzento banido”), o compositor evoca a gestação da obra: “[…] Reflexões em forma de relâmpago sobre o número 5, aceitação dos seus imperativos, e interpretação subjectiva dos seus potenciais.
O número 5 como constante de uma multiplicidade de funções retóricas e formais. […]
Que o conjunto do discurso harmónico seja duma luminosidade quase estonteante, por vezes crua. […]
Que duas contradições sejam banidas: a regularidade irregular (receosa de o ser) e, sobretudo, a irregularidade regular. […]”
No âmbito das Nuits de la Fondation Maeght, foi-lhe encomendada uma obra que viria a ser Duktus, estreada em Saint-Paul-de-Vence em 1987, durante um concerto monográfico pelo Ensemble Modern dirigido por Ernest Bour, onde foi também interpretada Musik der Frühe. Num texto posterior, João Rafael esclarece:
“A palavra Duktus em alemão está associada aos diferentes tipos de fluidez da escrita, isto é, à maneira pessoal de escrever, tanto no seu aspecto caligráfico (desenho, linha) como no seu aspecto estilístico (literário). […] A ideia principal da peça é de facto a constituição de uma única linha monódica, de um único fluxo melódico que percorre a obra e ao qual será dada forma ao longo do seu desenvolvimento.”
Em 1988, a versão completa de Clivages foi estreada pelas Percussions de Strasbourg, em Turim. João Rafael analisa assim a obra:
“Como material rítmico desta peça, Emmanuel Nunes utilizou as seis fórmulas rítmicas que tinham sido o ponto de partida para a composição de Minnesang. […] Um dos aspectos mais interessantes e inovadores de Clivages (sobretudo na segunda peça) é talvez a forma como os timbres dos diferentes instrumentos de percussão conseguem ultrapassar a sua mera presença físico-acústica individual (enquanto informação de timbre que permite a identificação da sua origem instrumental), tornando-se elementos de uma linguagem musical coerente, através da utilização dessas mesmas qualidades sonoras, as quais se vêem atribuir funções equivalentes às dos vocábulos, sílabas, consoantes, vogais, etc. numa língua. Organizados depois em “palavras”, “frases”, etc., estes elementos adquirem no desenrolar do discurso um significado musical que ultrapassa a sua existência acústica individual, da mesma forma que, na linguagem falada, diferentes combinações das mesmas sonoridades (vogais, consoantes, sílabas, etc.) podem exteriorizar conteúdos semânticos diversos (conforme o agrupamento específico dessas sonoridades, o contexto, a entoação, etc.). Esses conteúdos situam-se muito para além da adição pura e simples de tudo aquilo que já estava “subentendido” nas sonoridades individuais em presença.”
Quodlibet, composto entre 1990 e 1991, é uma peça para seis percussões, vinte e oito instrumentos e orquestra, com cerca de 57 minutos de duração, que será estreada no Coliseu de Lisboa em Maio de 1991, pelo Ensemble Modern, as Percussions de Strasbourg e a Orquestra Gulbenkian, sob a direcção de Mark Foster e de Emilio Pomárico.
Emmanuel está muito ligado ao Coliseu desde a infância, e descreve-o da seguinte forma, num texto de 1995, intitulado “Un espace de temps” (“Um espaço de tempo”), (publicado em 1997, numa obra colectiva: Nähe und Distanz, volume 2, sob a direcção de Wolfgang Gratzer, nas edições Wolke, em Hofbeim, Áustria.):
“No final dos anos 40 e no início dos anos 50, (re)encontrei-me muitas vezes numa sala de espectáculos de dimensões pouco habituais, construída mais ou menos na mesma época que o metro de Paris, e à qual se chamaria hoje uma sala polivalente.
Era lá que ia assistir a grandes espectáculos de circo, ou a encontros de ginástica. O fascínio que tais espectáculos exerciam sobre mim era de cada vez sempre esperado e sempre maior, sobretudo porque a sensação de um imenso espaço fechado tomava posse dos meus olhos e dos meus ouvidos, muito antes do início do espectáculo.
Ao chegar ao camarote depois de percorrer corredores sombrios, era preciso esperar que um funcionário nos viesse abrir a porta (como se fosse um antigo guarda-nocturno), e quando podia enfim entrar e ter uma visão total da sala, procurava durante longo tempo a forma de orientar e sincronizar o meu olhar em função de uma infinidade de PICOS SONOROS, que emergiam de uma massa de cerca de três mil pessoas, que assim me iam fazendo tomar consciência, através do ouvido, de um tal espaço. Os olhos partiam em busca dos sons, enquanto os ouvidos me deixavam adivinhar as distâncias e davam ao meu olhar uma tessitura e uma duração sempre diferentes.
Quando, no final dos anos 50, lá ia para ouvir intérpretes prestigiados de música clássica, ou para assistir a representações de ópera (ou mesmo de zarzuelas importadas de Espanha), já tinha começado a minha iniciação à teoria musical, e já não ia para os camarotes, mas para lugares mais baratos que ficavam ou em volta da plateia (um pouco como numa arena), ou mesmo lá no cimo de tudo (por cima dos camarotes); ficava de pé, apoiando-me na balaustrada e dominava todo o espaço, com a orquestra a alguns quinze ou vinte metros lá em baixo.
A acústica geral era bastante desfavorável, sobretudo quando se tratava de concertos sinfónicos, e o destino (ou mais precisamente: as leis da física que eu mal conhecia na altura) quis que, na quase totalidade dos casos, quanto mais caros eram os bilhetes piores eram as condições acústicas. De certas zonas da plateia, o auditor “privilegiado” ouvia cada obra mais três vezes do que uma. Já então se tentara fazer alguma coisa, suspendendo uns painéis acústicos, mas um espaço daqueles continuava a ser muito reverberante.
A verdade é que eu me instalava muitas vezes lá em cima, e que me acontecia, quando a posição me começava a incomodar, afastar-me uns quatro metros da balaustrada e sentar-me no chão com as costas encostadas à parede, onde terminava, por assim dizer, a grande abóbada que cobria todo o espaço. As condições acústicas eram aí excelentes, mesmo (e sobretudo?) quando já não conseguia ver a orquestra e tinha a viva impressão de me encontrar no interior de um espaço cuja percepção mudava naturalmente com a minha visão (visualização), enquanto que a audição permanecia constante. Mas esta mudança de uma espacialidade que eu (re)construía no meu espírito, não seria possível sem a continuidade temporal da audição. Foi pois a alguns vinte metros de distância, encostado à abóbada, que me lembro de ter escutado os dois últimos movimentos do Concerto para violino de Beethoven (ou seria de Brahms?) por David Oïstrakh, e de ter regressado à balaustrada pouco antes do fim da obra. Isto passava-se no Coliseu dos Recreios de Lisboa, há trinta e cinco anos atrás.
No dia 11 de Maio de 1991, o meu Quodlibet estreou-se lá.”
Mil novecentos e noventa e um foi também o ano em que Emmanuel fez 50 anos e, nessa ocasião, o seu amigo, o compositor e musicólogo Enrique Macias, organizou diversas manifestações na Fundação Serralves no Porto e convidou-o para as Jornadas de Música Contemporânea de Santiago de Compostela, onde foi estreada a peça Rubato, Registres et Résonances, que Emmanuel lhe dedicou post mortem. Esta obra, para flauta, clarinete e violino, baseia-se na Invenção em fá menor de J.-S. Bach. O título exprime os três métodos que geraram a metamorfose do original.
A partir de 1992, Emmanuel Nunes é convidado para dar aulas no CNSM de Paris, onde é professor de composição desde Outubro de 1993.
Escrita entre 1988 e 1991, Lichtung I, peça encomendada pelo Ircam, para violoncelo, trompa, clarinete, trombone, tuba, dois percussionistas, oito altifalantes e electrónica ao vivo (Ircam), foi estreada em Paris, no dia 13 de Fevereiro de 1992, pelo Ensemble Intercontemporain, dirigido por Mark Foster, com direcção informática de Eric Daubresse. Lichtung, em alemão, significa clareira, esclarecido e lichten, aparelhar, levantar (âncora) ou ainda, podar (uma árvore). Peter Szendy apresenta-a da seguinte forma:
“A obra é construída sobre estas “iluminações”. Excessos de informação, percebidos no limite como texturas: acumulações por vezes extremas que abrem caminho a esclarecimentos, a passagens de luz. Os objectos confundidos reaparecem a uma nova luz: distintos.
Temos por vezes muita dificuldade em orientarmo-nos no espaço. E isso vai ser Gelichtet: podado. De uma maneira temporal e de uma maneira espacial…”
A escrita instrumental e o programa informático são indissociáveis na sua elaboração. Para o compositor, tratava-se de não escrever uma partitura ‘para transformar’ a posteriori. Uma tentativa de sincronização máxima, para cada acontecimento, entre a agógica instrumental e o discurso do computador, de uma enorme complexidade rítmica.
‘Penso ter desenvolvido aquilo a que se poderia chamar um certo virtuosismo no interior dos programas. São por vezes extremamente virtuosos; por um segundo, tem-se por vezes toda uma polifonia de procedimentos. O tempo transforma-se completamente…’
E a escrita tende ‘para um limite quase inacessível: um tratamento individualizado de cada momento espacio-rítmico.’
Com efeito, o som de cada instrumento é enviado para o computador, que o submete a alterações e gera a sua espacialização através de um dos oito altifalantes dispostos na sala. Esta colocação no espaço é concebida de acordo com relações rítmicas: as trajectórias – a tecedura do local em redes de diversas periodicidades cruzadas – escrevem-se então segundo uma matriz que está, desde o início, no coração da Criação.
Atribuindo um invólucro – um perfil dinâmico – a esta matéria sonora que percorre o local, podemos mascarar ou fazer surgir essas relações rítmicas subjacentes. E o computador transforma-se num instrumento maravilhoso para ir para além do instrumental, rumo ao desconhecido do ritmo:
‘uma visão quase idealizada da concepção rítmica quer dizer para mim que regularidade e irregularidade são apenas uma questão de perspectiva…’ ” (As citações provêem de textos de apresentação redigidos por Emmanuel Nunes para as suas obras, e de entrevistas realizadas por Peter Szendy, a 15 e 20 de Janeiro de 1992, no Ircam.)
Nesse mesmo ano, para festejar os 500 anos dos Descobrimentos, o governo português propôs a Emmanuel Nunes uma encomenda com esta temática. Este hesitou durante muito tempo na escolha dos textos.
Finalmente, decidiu-se por Os Lusíadas de Luís de Camões, e essa peça veio a chamar-se Machina Mundi. Foi a primeira vez que aceitou compor uma obra cuja encomenda provinha de uma circunstância exterior aos seus próprios projectos. No entanto, este período mítico encontra um eco profundo na alma dos Portugueses e, numa entrevista aos Cahiers de Pandora, em Junho de 1981, à pergunta:
“Que sentido dá aos Descobrimentos Portugueses?”
Ele responde:
“É evidente que se reduzirmos o fenómeno dos descobrimentos a uma análise estritamente económica e social, não se pode evitar o problema da colonização, mas passamos ao lado do essencial! Com efeito, aquilo que é fascinante neste período, é essa dimensão de quase diáspora, simultânea com uma extraordinária sede de desconhecido, nessa aventura que não consigo explicar, mas com a qual me consigo identificar muito bem.
Estamos perante um paradoxo: hoje um Português encontra-se indo para o estrangeiro. A verdade é que, mesmo que apenas de um ponto de vista puramente geográfico, o povo português sente-se tentado a atirar-se ao mar. […] Estamos mais afastados da Europa por uma pulsão de procurar noutros lugares. Perante o desconhecido, sentimos a vertigem. Veja as conquistas do Oriente, por exemplo, segundo o que sei, nenhum outro povo, entre aqueles que partiram para além mar, retirou tão pouco proveito económico da situação. É um paradoxo incrível: quanto mais longe os Portugueses foram, mais pobres ficaram, até um ponto quase niilista.
Apesar das atrocidades coloniais, da procura desenfreada de riquezas, todo o lado colonialista bem conhecido, existe uma outra dimensão completamente diferente que é o próprio destino dos Portugueses, qualquer coisa como sonhar a sua pátria noutros lugares. Desde há algum tempo que muitos Portugueses sonham com o Portugal exterior. Alguém como Fernando Pessoa, entre algumas breves estadias em Inglaterra e em Paris, generaliza o longe através dos seus heterónimos: nunca está onde está, já que está em toda a parte. […]” Uma primeira versão de Machina Mundi (partes I, II, IV, V) foi estreada em Lisboa em Junho de 1992, e depois apresentada na Exposição Universal de Sevilha nesse mesmo Verão, com Pierre-Yves Artaud na flauta, Ernest Molinari no clarinete, Gérard Buquet na tuba, Sylvio Gualda nas percussões, e a orquestra e o coro Gulbenkian dirigidos por Farhad Mechkat. Um pouco mais tarde, em Novembro de 1992, a versão integral foi estreada no Festival de Outono de Paris, desta vez sob a direcção de Fabrice Bollon, com os mesmos intérpretes, à excepção da parte de percussão solo que foi confiada a Claire Talibart.
Este Festival de Outono foi dedicado a Emmanuel Nunes. Wandlungen (1986), Machina Mundi (1991-1992) e Quodlibet (1990-1991) foram aí apresentados em França pela primeira vez.
No número especial que o Le Monde dedicou ao Festival, em Setembro de 1992, Costin Cazaban escreve:
“Diz-se dele que é o herdeiro de Boulez e de Stockhausen. Poder-se-ia da mesma forma inscrevê-lo numa família mais vasta, que incluiria Mahler, Bach e Varèse. Mas todas estas afinidades não elucidam a personalidade de Emmanuel Nunes, a mistura singular de sensualidade e de espiritualidade na sua música, a acuidade de um pensamento analítico sempre aberto ao sentimento trágico. Em oito obras e três estreias francesas, Paris presta homenagem a este português de cinquenta e um anos, um dos faróis do nosso fim de século.”
Laurent Bayle, director do Ircam, no seu laudatio pronunciado a 23 de Outubro de 1996, na Universidade de Paris-VIII, por ocasião da atribuição do título de doutor honoris causa a Emmanuel Nunes, sublinha:
“É finalmente a partir de 1992 que o Festival de Outono de Paris, ao programar um ciclo de uma amplitude excepcional para um compositor da sua geração, lhe trará uma consagração internacional através daquilo que se tornará ainda uma cumplicidade de trabalho fiel entre uma directora artística, Joséphine Markovits, e o compositor.”
Nesta época, a série das Chessed vai enriquecer-se com duas outras peças, Chessed III, para quarteto de cordas, escrita em 1990-91, e estreada em Lisboa em 8 de Junho de 1992 pelo Quatuor Arditti, e Chessed IV, para quarteto de cordas e orquestra, escrita em 1992 e estreada em Junho de 1992, pelo Quatuor Arditti e a Orquestra Arturo Toscanini, em Bolonha.
Durante um concerto na Opéra de Paris, em 27 de Novembro de 1994, para o Festival de Outono, o Quatuor Arditti toca de novo esta peça, com a Orquestra Sinfónica da Rádio de Baden-Baden, Südwestfunk, dirigida por Jürg Wyttenbach, e Laurent Feneyrou apresenta-a nestes termos:
“Chessed IV e a luz nascente: CHESSED, quarta SEPHIRAH, quarta das dez esferas da manifestação divina, da Árvore da Vida, nos textos da Cabala, que Nunes despoja simbolicamente de toda a numerologia e de todo o hermetismo, significa bênção, graça, amor ou misericórdia de Deus. Depois de Tif’Ereth, a leitura dos escritos de Buber e de Scholem, e a experiência de uma violenta luz ofuscante descrita pelo Zohar, o ciclo das Chessed, mesmo não sendo a musicalização de um sistema filosófico, refere-se explicitamente aos textos sagrados hebraicos.
O ciclo Chessed inscreve-se ele próprio num ciclo ainda mais vasto, o de A Criação, onde as dispersões e arborescências rítmicas querem subtrair-se ao continuum caótico e informe que as precede: onde a composição já não resulta de um desenho, mas de um golpe de borracha; onde a obra já não é tachiste, mas mantém zonas de sombra, não enquanto ausência de luz, mas no sentido geométrico que lhe confere a refracção. “Do nevoeiro à luz, aos pontos de luz”, esclarece Nunes.
As diferentes realizações, as ramificações possíveis do material musical invadem o tecido da obra: mesmo no interior de Chessed IV (1992), nas suas diferentes secções, ressoa a anterioridade textual do quarteto de cordas Chessed III (1990-1991), onde a retoma de um estado inicial, primeiro, original, mas metamorfoseado, gera a alteração da aura. Da ambiguidade de um momento e das suas suspensões, nasce então um tempo de epifania luminosa, onde dedução e perspectivação do que já existe pintam as múltiplas relações possíveis do instrumentário.
O trágico da obra torna-se a expressão dum instante de decisão, duma crise que sem cessar renasce, duma solução que não pode ser senão talvez provisória, ou antes duma génese, duma arte orgânica, dum dar à luz, como testemunham os diferentes momentos do quarteto “solista” e a solidão efémera da orquestra.”
No Verão de 1995, Emmanuel Nunes é convidado para o Festival Internacional de Edimburgo, onde serão tocadas Versus I e Nachtmusik I, pelo Ensemble Contrechamps dirigido por Zsolt Nagy, assim como Quodlibet, pela BBC Scottish Symphony Orchestra, dirigida por Kasper de Roo e Emilio Pomárico.
A imprensa britânica foi muito elogiosa, e no The Scotsman, de 21 de Agosto de 1995, pode ler-se um longo artigo de Mary Miller:
“Um homem que pensa em busca da beleza. Um homem corajoso, duma inteligência e duma inventiva surpreendentes, a sua música emerge dum projecto profundo que, em vez de impor um qualquer controlo matemático desumanizante, permite a emergência dum mundo sonoro notável. Nunes absorveu toda a agitação, e até certo ponto, o mal-estar dos seus mestres de Darmstadt dos anos 60, mas incorporou-os na sua própria busca de beleza e numa rara necessidade de comunicar: não é um compositor que escreva para um clube de compositores ou de intelectuais. Este homem, sem qualquer sentido de compromisso, cria porque sente que tem que o fazer.”
E a edição de 4 de Setembro de 1995 relembra o que Brian Mcmaster, director do Festival Internacional de Edimburgo, afirmara sobre Nunes:
“É um compositor absolutamente maior. A sua música nunca antes tinha sido ouvida neste país.”
Na Velha Ópera de Frankfurt, em Dezembro de 1995, o Ensemble Modern dedicou dois dias de concertos a um cotejo das obras de Emmanuel Nunes com as de Anton Webern. Ao longo do primeiro dia, dedicado à música de câmara, foram tocadas alternadamente o Quinteto com piano, o Quarteto opus 22, o Trio de cordas opus 20 e os Cinco Canções Sacras opus 15 de Webern, e Versus III, Sonata a Tre, Aura e Versus I de Nunes. No segundo dia, ouviu-se a Passacaglia opus 1, as Cinco Peças opus 10 e as Seis Peças opus 6 para orquestra de Webern, e o concerto concluiu-se com Quodlibet.
Num importante texto de introdução à obra de Nunes, Joseph Häusler escreveu:
“Em Emmanuel Nunes, a grande constante é a sua elevada concepção da criação artística, no sentido de uma exteriorização que reflecte o espírito humano. A partir daí, a sua arte situa-se naturalmente numa corrente de transmissão que se desenvolve desde Bach, passando por Beethoven, Schubert e Mahler, até Boulez e Stockhausen. (…) Nestes últimos tempos, a arte de Emmanuel Nunes atingiu uma grande diversidade. Enriqueceu-se de uma nova etapa plena de verve e de mobilidade na formulação, de expressão e de colorido, duma faculdade soberana e extremamente virtuosa, tanto nos meios exteriores como nas possibilidades interiores. Por outras palavras, uma etapa plena duma dimensão de acção e de afirmação duma energia em permanente procura, que foi desde sempre o feito de Nunes.”
Desde o início de 1992, após a estreia de Lichtung I em Fevereiro, Emmanuel tinha começado por períodos intermitentes, mas com regularidade, o seu trabalho no Ircam sobre Lichtung II, cuja primeira parte foi estreada na Universidade de Lisboa, a 16 de Maio de 1996, pelo Ensemble Intercontemporain dirigido por Pascal Rophé. Alguns dias mais tarde, seria também apresentada em Paris, por ocasião dum ciclo dedicado a Emmnuel Nunes na Cité de la Musique, em Junho de 1996, num programa onde foram também tocadas Lichtung I, Wandlungen, e uma obra de João Rafael, Schattenspiel.
“No que se refere a Lichtung I, escreve Peter Szendy, a primeira parte de Lichtung II reflecte a cada instante uma espécie de preocupação hiperbólica do pormenor, tanto na partitura instrumental como na partitura informática: as prioridades, as hierarquias e as relações de causalidade entre o conjunto e o dispositivo electrónico tornam-se a maior parte das vezes indecidíveis. Esses cerca de onze minutos de música formam uma parte coerente da obra futura. O ‘virtuosismo informático’ de que Nunes falava a propósito de Lichtung I é aqui talvez mais sensível, devido ao virtuosismo instrumental que lhe faz eco.”
Desde 1988, Emmanuel Nunes nunca deixou de sublinhar a importância que dá ao seu trabalho de compositor no Ircam. No seu laudatio já anteriormente citado, Laurent Bayle opõe “a abordagem actual dos compositores, menos teóricos, menos inclinados à experimentação, exigindo resultados sonoros rápidos e facilmente manipuláveis, correndo o risco de uma certa exterioridade da técnica” à de Emmanuel, descrevendo-a da seguinte forma:
“É totalmente a contra-corrente destas tendências que se inscreve o percurso de Emmanuel Nunes no Ircam. […] Ele vem para desenvolver um projecto que passa pela vontade duma exploração do espaço correlacionada com todos os parâmetros da composição. […]”
Com uma obstinação e uma convicção na legitimidade do seu recurso à informática, dá-se a si próprio o
“tempo para se consagrar à aprendizagem de novos ambientes informáticos, de investir o instituto por períodos repetidos, durante meses, e de deixar o estúdio por vezes de madrugada, a fim de concluir aquilo que viria a ser Lichtung II”.
Esta peça é uma encomenda de Françoise e Jean-Philippe Billarant, no âmbito do seu apoio à criação musical no Ircam.
Lichtung I e II são dedicados a Vieira da Silva, cuja pintura Emmanuel admira profundamente e cujas reproduções de quadros ilustram a capa de diversos discos do compositor.
“Quando comecei a ser tocado em Paris, afirma numa entrevista com Brigitte Massin, ela veio algumas vezes comigo assistir aos concertos. E sei que ela gostava muito do meu trabalho. Fiz mal em ter ficado muito tempo sem a ver com frequência. Vi-a terrivelmente pouco. Por razões que não são razões. E o destino quis que ela não tenha sequer sabido que Lichtung lhe era dedicada. Lichtung não é em memória de Vieira: eu não sabia que ela ia morrer. Quanto a uma relação entre os nossos trabalhos, tudo o que posso dizer, é que no séc. XX, há talvez três pintores com os quais tive uma relação de aprendizagem: Kandinski, Paul Klee e Vieira da Silva. As suas obras tiveram uma enorme repercussão na minha maneira de pensar o gesto”. (Julho de 1992, citado no programa do Festival de Outono em Paris, 1992).
No Verão de 1996, no Festival de Edimburgo, Ruf foi tocado pela primeira vez na Grã-Bretanha, pela BBC Scottish Symphony Orchestra, sob a direcção de Emilio Pomárico, e pode-se ler no The Herald, pela pena entusiasta e um pouco exaltada de Michael Tumelty:
“[…] Nunca na minha vida ouvi nada semelhante. Era uma música vinda do espaço, ou dos recônditos de uma extraordinária imaginação, possuidora do seu próprio quadro de referências. A orquestra, dividida em duas partes iguais de cada lado do palco, lançava ao pequeno auditório a música abstracta mais violentamente dramática jamais concebida. […] Teatro instrumental puro e duro, que não se referia a nada senão a si próprio. Não se ligava a quase nada, excepto ao seu próprio contexto, excepto numa incursão no final desta longa peça, no território das últimas obras de Mahler. […]”
No Festival de Outono em Paris nesse ano de 1996, Minnesang é cantada pelo Ensemble Vocal Soli-Tutti dirigido por Denis Gautheyrie, e uma obra nova, encomendada pelo Festival, é estreada pelo Ensemble Contrechamps, sob a direcção de Emilio Pomárico. Trata-se de uma peça para 16 instrumentos e coro feminino, dedicada a Eric Daubresse, cujo título e texto em latim, Omnia mutentur, nihil interit (tudo muda, nada perece) é retirado das Metamorfoses de Ovídeo, (Livro XV, fixado e traduzido por Georges Lafaye, Les Belles Lettres, 1991). Como para Minnesang e Machina Mundi, cada verso retirado a Ovídeo guardou a sua forma original, embora a ordem das proposições tenha sido modificada pelo compositor, de tal forma que cada uma das seis partes da peça contém uma temática própria. Eis alguns extractos:
“Tudo muda, nada perece; o sopro vital circula, vai daqui para ali e apodera-se a seu bel-prazer das mais diversas criaturas; dos corpos dos animais passa para os dos homens, do nosso para os dos animais; mas não morre nunca; a cera maleável, que recebe do escultor novas marcas, que não fica nunca como era e muda sem cessar de forma, é sempre a mesma cera; assim a alma, digo-vos eu, é sempre a mesma, ainda que emigre para diferentes figuras. […] Nada conserva a sua aparência primitiva; a natureza, que sem cessar renova o universo, rejuvenesce umas formas com as outras. Nada perece, creiam-me, no mundo inteiro; mas tudo varia, tudo muda de aspecto; aquilo a que se chama nascer, é começar uma existência diferente da anterior; morrer, é terminá-la. […] Vedes a noite, depois de ter terminado o seu curso, inclinar-se para o dia e o astro radioso suceder à noite obscura. […] Ó tempo voraz, velhice ciumenta, destruís tudo; não há nada que, uma vez atacado pelos dentes da idade, não seja em seguida progressivamente consumido pela morte lenta que lhe fazeis suportar.”
Nesse ano, Emmanuel Nunes volta a viver em França, perto de Paris. Durante o ano de 1997, mergulha na obra de Kandinski, e num trabalho intitulado “À l’écoute des écrits de Wassily Kandinsky” (“À escuta dos escritos de Vassili Kandinski”), onde estuda a problemática duma constante entre as diferentes artes, a importância dos elementos visuais no interior dum espaço cénico, os aspectos da sua linguagem pictórica tal como o pintor os tenta sistematizar, assim como as palavras retiradas de forma recorrente ao mundo sonoro como referências plásticas.
Compõe também Musivus, peça para orquestra, encomendada para a Exposição Universal de 98 e estreada em Lisboa, a 8 de Maio desse ano, pela Orquestra Gulbenkian, sob a direcção de Emilio Pomárico. O título da obra é uma palavra latina que significa “obra em mosaico”, e se nos entretivermos a seguir os percursos de sentido desde a palavra grega original, ficaremos muito próximos da elaboração imaginária e lógica da peça, já que a musa grega deu certamente a música, mas também a palavra musivum, que em latim medieval se transformou em musaicum, quer dizer a obra das musas, antes de ser uma obra de arte feita de peças trazidas de materiais diversos e de diversas cores, o mosaico. Assim, Musivus é uma música colorida, composta em mosaico. No programa do Festival Présences 2000, Alain Bioteau descreve-a nos seguintes termos:
“Cada elemento atómico de mosaico é orientado, pelas suas qualidades intrínsecas, de forma particular e funcional em relação aos outros elementos e à figuração geral. Este princípio deve integrar-se na própria composição. Segundo confessa Emmanuel Nunes, este desafio levou-o mais longe do que ele pensava, num jogo combinatório muito rico e na descoberta de novos territórios. Na verdade, este princípio de escrita não é senão o resultado de uma tendência já presente em numerosas obras: Lichtung I, Machina Mundi, Quodlibet… Mas não se pode falar verdadeiramente em mosaico senão com Lichtung II e Musivus. O compositor elabora mosaicos como entidades que têm uma lógica própria. Na origem, contêm todas um mesmo número de divisões que representam um quadro, mas têm, no entanto, durações reais muito contrastadas. A disposição da orquestra participa também desta ideia de mosaico. Foram criados numerosos subgrupos, dispostos em quatro níveis, de maneira não convencional, como blocos de cores tímbricas e variadas onde a simetria desempenha um papel. Esta disposição visa directamente permitir ao ouvinte uma audição fisicamente calibrada.”
Será apenas a partir de 1997 que a obra de Emmanuel Nunes encontra um verdadeiro eco na Holanda e na Bélgica, onde diversos programas lhe são dedicados. Assim, em Maio de 1997, o Ensemble Ictus apresenta um concerto-retrato em Bruxelas, onde são tocados Nachtmusik I, Versus III e Einspielung II. No ano seguinte, em Outubro de 1998, André Hebbelinck convida Emmanuel Nunes a ir a Amesterdão, onde Quodlibet é apresentado no Concertgebouw, pela Orquestra Filarmónica da Rádio de Amesterdão, sob a direcção de Lawrence Renes e de Micha Hamel. Mais tarde, a 6 de Março de 1999, de novo no Concertgebouw, Wandlungen é interpretado pelo Nieuw Ensemble, dirigido por Ed Spanjaard.
Esse mês de Março de 1999 foi rico em concertos, já que o Festival Ars Musica permitiu escutar em Bruxelas, na noite de abertura, Ruf seguido de A Canção da Terra de Gustave Mahler, pela Orquestra Filarmónica de Liège, dirigida por Michaël Zilm. Estas duas obras já tinha sido reunidas num mesmo programa dezassete anos antes, na Radio-France. Nos dias seguintes, foram apresentadas Musik der Frühe, pelo Ensemble Ictus dirigido por Mark Foster, Esquisses e Chessed III pelo Quatuor Arditti, Einspielung III, pelo seu intérprete favorito, o violetista Christophe Desjardins, e Lichtung I, pelo Ensemble Champ d’Action, também dirigido por Mark Foster. Franck Madlener, director artístico do Festival, apresenta desta forma os concertos:
“A obra de Emmanuel Nunes, áspera, violenta e tão pouco lisa, exaure todas as normas da economia musical. A obsessão da espacialização de Nunes, constitutiva da sua escrita, esta ‘poiética da distância’, assim designada pelo compositor, manifesta-se tanto nas obras puramente instrumentais, como naquelas em que o pensamento musical se contrapõe ao raciocínio informático. O poder compulsivo, obstinado dos megálitos de Nunes abre brechas fulgurantes no espaço cerrado da textura. A abertura soa então como um sinal do longínquo e uma dádiva da distância.”
Ainda em Basileia, Quodlibet inaugura a reabertura da catedral a 24 de Março de 1999, interpretada pela Basel Sinfonietta, o Ensemble Modern e o Pulse Percussion Ensemble, dirigidos por Kasper de Roo e Jürg Henneberger.
Em 1999, Emmanuel Nunes recebe o prémio do Conselho Internacional da Música conferido pela UNESCO e, nessa ocasião, em Novembro, tem lugar um concerto em Aix-la-Chapelle onde os músicos do Ensemble Modern tocam Versus I, Aura, Sonata a Tre e Versus III, assim como o Trio de cordas opus 20 de Webern.
Finalmente, depois de uma ausência de uma dezena de anos da programação da Radio France, três obras de Emmanuel Nunes, Esquisses, Chessed III e Musivus, em estreia francesa, foram programadas por Alain Moëne para o Festival Présences 2000.
A partir da Primavera de 1999, o compositor voltou à partitura de Lichtung II e ao longo do trabalho de programação informática que deverá culminar a síntese dos dois domínios, instrumental e electrónico, tal como ele a tem vindo a aprofundar nos últimos doze anos. A obra foi estreada no Théâtre du Rond-Point, em Paris em Junho de 2000, no âmbito do Festival Agora. Nesse concerto, Lichtung I e II foram interpretados pelo Ensemble Intercontemporain, dirigido por Jonathan Nott, sendo a direcção informática assegurada por Eric Daubresse e Ipke Starke. Estas duas obras serão apresentadas em Lisboa pelos mesmos intérpretes, em Maio de 2001 na Fundação Gulbenkian.
Emmanuel Nunes foi o convidado principal do Tage für Neue Musik de Zurich 2000, onde foram interpretadas oito obras que reflectem trinta anos do seu trabalho de compositor. Um programa semelhante foi apresentado em Dezembro de 2000, na Fundação Serralves no Porto, pelo Ensemble Ictus, dirigido por Peter Rundel. Foi durante essa semana de concertos no Porto que o compositor teve conhecimento que acabava de lhe ter sido atribuído o Prémio Pessoa.
HELENE BOREL
Tradução de Ana Sofia Sampaio
HELENE BOREL [Após concluir estudos de letras e de psicologia (psicologia clínica e psicanálise), Hélène Borel ensinou em diversos hospitais psiquiátricos, e dirigiu durante sete anos a escola especial do serviço de psiquiatria infanto-juvenil de Salpêtrière. Escreveu uma tese sobre o futuro das crianças psicóticas e desenvolveu um trabalho de psicoterapia através da escrita. Pintora, Hélène Borel pratica e ensina actividades relacionadas simultaneamente com o teatro e o artesanato (fatos, marionetas, máscaras e cenários).]
Um dia, no início dos anos 80, quando Emmanuel Nunes tinha cerca de quarenta anos, apanhou um táxi ao sair de um ensaio na Radio France, em Paris. Pedindo-lhe desculpa por lhe falar nisso, o taxista disse-lhe que ele lhe fazia lembrar uma criança que ele tinha conhecido na sua juventude, que tinha problemas semelhantes aos dele para andar e falar: era uma criança muito inteligente que era obrigada a trazer a sua máquina de escrever quando tinha testes na escola. Apesar de o taxista falar francês muito correctamente, Emmanuel apercebeu-se de um leve sotaque e perguntou-lhe de onde era. “Sou português”. “Eu também!”. À queima-roupa, o taxista exclamou: “Você é o Emmanuel! Quem sou eu?”. Este homem tinha sido condutor da carrinha da sua escola quando ele era criança.
Emmanuel Nunes nasceu em Lisboa, no dia 31 de Agosto de 1941. Muito pequeno ainda, aprendeu a ler com os pais, entrando depois com seis anos na escola primária. No entanto, como tinha dificuldades com o grafismo e a dicção, devido a uma doença neuro-motora, no ano seguinte os pais inscreveram-no numa escola especial para crianças com deficiências intelectuais e mentais. Era uma escola privada, instalada num grande apartamento, de um casal com formação nos novos métodos pedagógicos inspirados por Freinet e Montessori. Nessa escola, Emmanuel era a única criança que estudava o programa normal e ia fazer os exames do ensino público fora, tendo passado sempre.
Aos doze anos, retoma a escolaridade normal, entrando no terceiro ano do liceu. Passa no exame do final do quinto ano, com quinze anos, e tem que escolher uma orientação para concluir os dois últimos anos do liceu. Sob a influência paterna, opta pela secção de ciências e obtém o diploma do curso liceal em Junho de 1958. No entanto, em Setembro desse ano, reprova no exame de admissão à Faculdade de Farmácia. Tinha acabado de fazer dezassete anos. Ao saber do resultado, o pai diz-lhe que tem vergonha dele por ter reprovado depois de todos os esforços administrativos e pessoais que ele teve que fazer para que o seu filho deficiente tivesse a possibilidade física de fazer os seus exames. Por exemplo, fora preciso durante meses criar enormes dossiers e contactar toda a espécie de sumidades para finalmente conseguir obter, através de uma cunha, um mínimo de condições materiais, como a autorização de escrever com uma máquina, e de continuar a trabalhar durante a meia hora de intervalo, para poder dispor de um pouco mais de tempo.
Começa então um período negro e conflituoso que irá durar três anos. Emmanuel decide voltar a apresentar-se a exame em Junho, mas estudando sozinho em casa para poupar ao pai, que entretanto deixara de lhe falar, as propinas da escola. Está sombrio e depressivo e, em Junho de 1959, reprova pela segunda vez no exame de admissão a Farmácia. No ano seguinte, chumba pela terceira vez ao tentar entrar na Faculdade de Medicina, em Junho de 1960.
Durante estes três sombrios anos, Emmanuel começa a pensar seriamente estudar música. Já não anda na escola e continua a trabalhar sozinho sem conseguir obter grandes resultados. No entanto, depois do seu segundo fracasso, inscreve-se na Academia de Música. Tem então dezoito anos.
Na verdade, até essa altura, ele não tinha nenhuma ideia precisa em relação a uma ocupação futura, mas já tinha sentido o desejo de aprender música. Ainda pequeno, entre os cinco e os oito anos, apoquentava a criada para que lhe desse uma série de panelas que ele agrupava, e em que depois batia fazendo uma grande algazarra com enorme regozijo. Mais tarde, dirá ironicamente: “Foi o acto mais ligado ao som de que me recordo antes de me iniciar na música, o que não me levou no entanto a aderir à música concreta…”. (Entrevista a Pedro Figueiredo na revista portuguesa Arte Musical, Janeiro-Abril 1999.)
Ao crescer, esta brincadeira acabou, mas descobriu mais tarde um prazer idêntico, durante o período negro, quando passava horas a improvisar ao piano, sozinho ou com um amigo. Ainda criança, havia em frente de sua casa um mercado coberto, com uma animação e uma algazarra incríveis, que ele gostava de ficar a contemplar e a escutar da janela, durante longos períodos. Esta contemplação, segundo ele “vazia e sem objectivo”, retomá-la-ia mais tarde, nos anos negros. Foi cerca dos doze anos que Emmanuel decidiu aprender música, piano sobretudo, que era para ele quase acessível fisicamente, porque apesar das suas mãos desajeitadas, conseguia produzir sons e isso era extraordinário. Na sala de aulas, havia um piano, um colega sabia tocar um pouco, e Emmanuel gostava de experimentar. Quis pois ter um piano. O pai objectou que ele nunca conseguiria tocar, mas a mãe insistiu, dizendo que era muito importante para exercitar as mãos e reeducá-las. O pai acabou por aceitar e Emmanuel conseguiu o seu piano.
Emmanuel foi educado com grande liberdade. Os pais nunca o travaram apesar da sua deficiência, deram-lhe sempre liberdade de ir e vir, e de brincar com os seus camaradas. Confiavam nele e responsabilizavam-no integralmente, aceitando-o tal como era. A mãe tinha aceitado a doença desde o início, quase como uma coisa natural, que fazia parte dele. Além disso, apesar de não se interessarem nada pela cultura, como se ela não existisse, queriam que o filho tivesse estudos. O pai só lera a Bíblia. Tinha partido para a América aos dezasseis anos em busca de fortuna, fugindo à terra, à aldeia e ao moinho paternal. Aí, convertera-se ao protestantismo por rebelião contra o catolicismo da família, tornando-se produtor de próteses dentárias. Regressou sete anos mais tarde, para se instalar como dentista em Lisboa. A mãe geriu durante alguns anos uma loja de moda. Lia com muito interesse as revistas de divulgação médica e, mais tarde, gostava de ler os romances que Emmanuel lhe emprestava quando, com cerca de quinze anos, depois do exame do quinto ano, começou a comprar livros. O pai sempre lhe deu de boa vontade dinheiro para essas compras, mas sem partilhar o entusiasmo.
Como todos os dias lia os anúncios dos jornais, encontrou um professor de piano para o filho, uma francesa de certa idade, que lhe ensinou as notas, mas que nunca lhe queria tocar os trechos que ele tinha que estudar, de tal forma que, ao fim de três meses, ele desistiu.
Contrataram uma outra professora, que tocava também violino e viola, e que ficou com ele durante cinco anos. Estudou assim música dos doze aos dezassete anos e, de forma muito sistemática, solfejo, as oito claves e a teoria.
Com cerca de treze anos, depois de ver um anúncio no jornal de um disco acessível, Emmanuel compra o seu primeiro disco, que ainda hoje guarda, e que contém quatro peças de compositores célebres: a Eine Kleine Nachtmusik de Mozart, a 8ª Sinfonia de Beethoven, a Grande Polonaise de Chopin e a Cavalgada das Valquírias de Wagner. Esta última parecia-lhe a mais estranha, em relação àquilo que, habitualmente, rodeava sem cessar os seus ouvidos. Já anteriormente tinha começado a escutar um pouco de música clássica na rádio, mas solitariamente, quase ciosamente, sem a partilhar com os pais, que no entanto não lhe eram hostis, apenas indiferentes. Afirma ele: “Não queria que se escutasse aquilo sem acreditar, precisamente porque tinha consciência de que era uma coisa sagrada”. Este primeiro disco, ouviu-o muitas vezes.
A professora de piano e o marido eram grandes apreciadores de ópera, deslocando-se mesmo ao estrangeiro para assistir a espectáculos, que ela depois lhe descrevia. Um dia em que ela não pôde ir, deu-lhe o seu bilhete. Emmanuel tinha quinze anos quando viu, pela primeira vez na sua vida, uma sala de ópera, um palco, uma orquestra. Foi no Teatro de S. Carlos, que é uma magnífica cópia do Scala de Milão, e tocava-se nesse dia Hansel und Gretel de Humperdinck. Foi um espectáculo maravilhoso e ele quis logo arranjar uma assinatura. Infelizmente, já estava tudo reservado por vários anos! No entanto, no ano seguinte, Emmanuel conseguiu arranjar uma assinatura no “galinheiro”, através de uma vendedora da loja da mãe, que era sobrinha do chefe electricista do teatro. Manteve sempre essa assinatura até deixar Portugal em 1964, com 23 anos. A partir desse dia, não perdeu nenhuma das óperas apresentadas, que ia ver ao domingo à tarde. Havia doze ou catorze por ano, cada uma tocada duas vezes. De Outubro a Dezembro, eram as óperas alemãs, depois as italianas e as francesas.
No início, Emmanuel não se preocupava em saber quem era o autor, nem quem cantava ou tocava. Da mesma forma que ouvia o seu disco, ouvia e via uma ópera como se contempla um quadro, sem ter a noção que podia haver várias interpretações possíveis de uma mesma obra. Era como um livro ou um filme. A primeira, Hänsel und Gretel, tocou-o verdadeiramente, maravilhou-o, do ponto de vista do espectáculo e da música, gostou de tudo. Fazia o trajecto de eléctrico, na carreira 24 que ainda recentemente existia, levando quase uma hora. Não tinha então qualquer ideia sobre os compositores e os intérpretes, começando por ler o programa e por escutar aquilo que se dizia à sua volta no intervalo, falando um pouco com os seus vizinhos que acabava por conhecer porque, com a assinatura, eram sempre os mesmos. Ouvia conversas que lhe pareciam vir de outro mundo: “Este tenor cantou menos bem que Fulano há dois anos!” – e outras afirmações e comentários que revelavam uma variedade insuspeita de escutas e de discursos.
Rapidamente, após o deslumbramento ainda sem critério perante um espectáculo belo, começou a despontar um sentimento crítico em relação à música. Em muitas óperas italianas, certas passagens agradavam-lhe infinitamente, mas o resto frequentemente o aborrecia. Aquelas que o levavam de uma ponta a outra sem enfado, que tinham uma certa unidade dramática, eram as de Puccini. E depois ficou verdadeiramente fascinado por Mozart, Wagner, Strauss, com Pélleas et Mélisande de Debussy, com encenação e cenografia de Jean Cocteau. Mais tarde, Wozzeck perturbou-o verdadeiramente. Era a primeira apresentação em Portugal de Wozzeck, sob a direcção de Pedro de Freitas Branco, um maestro que Ravel bem conhecera e apreciara.
Tendo-se familiarizado com o Teatro de S. Carlos, assistiu também a todos os concertos que aí foram apresentados. Entrava pela porta de serviço, nas traseiras, ia apertar a mão do chefe electricista e instalava-se num dos pequenos camarotes que existem à boca de cena, lá mesmo em cima, do lado esquerdo do palco, mesmo por cima da orquestra ou do pianista que estavam a tocar no palco.
Durante estes anos da adolescência, Emmanuel frequentou regularmente as aulas de piano, mas não tinha muitas verdadeiras conversas sobre música com a sua professora; era sempre ele que fazia mil e uma perguntas e que queria saber tudo. Quando aos quinze anos quis aprender harmonia, a professora mandou-o a um velho mestre, que lhe deu a impressão de estar ainda mergulhado no séc. XIX, tanto pelo seu aspecto físico como pelas suas maneiras. Durante um ano, trabalhou com este velho que o fazia aprender de cor todos os acordes classificados, sem nunca os tocar, e ele conhecia-os a todos de cor, sem jamais saber a que é que aquilo correspondia.
Depois disso, Emmanuel começou a ter a veleidade de compor, mas abandonou as aulas de harmonia e mesmo as de piano. Foi no último ano do liceu e, depois do exame final, durante o Verão de 1958 em que fez dezoito anos, conheceu um amigo que lia muito, e como era a primeira vez que Emmanuel encontrava alguém da sua idade que se interessava por literatura e arte, tornaram-se muito próximos. Foi o ano do seu fracasso escolar, do estudo solitário, o período negro. Ouvia muita música e lia muitos livros sobre música, e foi nessa época que decidiu tornar-se compositor. O seu grande problema era: como começar e com quem? O seu amigo vinha visitá-lo com frequência e conversavam longamente, evocando um personagem mítico para eles, um compositor português profundamente influenciado por Bartok e Ravel, Fernando Lopes Graça.
Um dia, ao chegar a sua casa, o amigo anunciou-lhe que tinha encontrado uma pessoa que conhecia Lopes Graça: este dirigia um coro, era preciso ir assistir a um ensaio e pedir para lhe falar no intervalo. Este músico pertencia ao Partido Comunista Português e era perseguido pelo regime fascista. O governo tinha suprimido o seu lugar de professor de piano no Conservatório de Lisboa e tinha-o proibido de exercer no ensino oficial.
Emmanuel dirigiu-se pois à Academia de Música, estabelecimento privado onde Lopes Graça trabalhava com o seu coro de amadores, e disse-lhe: “Gostaria de me tornar compositor, mas não sei nada sobre a música do nosso tempo. Poderá aconselhar-me alguns livros ou dar-me aulas?”. “O que é que estudou em termos musicais?” – “Nada!”. Estando então proibido de ensinar, Lopes Graça propôs-lhe que se inscrevesse na Academia para estudar harmonia e contraponto, sublinhando que não se pode compreender a música moderna se não se conhecer a música do passado.
Em Novembro de 1959, Emmanuel inscreve-se na Academia de Música onde irá estudar durante quatro anos com uma professora belga, Francine Benoît, cuja formação na Schola Cantorum de Paris era muito académica, mas que era ela própria uma pessoa extremamente aberta. Iniciava, assim, aos dezoito anos uma primeira formação profissional.
Durante esses anos, Lopes Graça emprestou-lhe muitos livros de música, entre os quais o famoso manual de harmonia de Schoenberg, na edição americana, que ele guardou e estudou durante um ano e meio.
Emmanuel está indeciso e disperso entre as suas diversas actividades, já que se trata também da época dos seus estudos solitários. Depois da sua reprovação na admissão à Faculdade de Medicina, em Junho de 1960, decide reorientar os estudos para as disciplinas literárias que o interessam muito mais, e inscreve-se no curso nocturno para preparar os exames finais de letras, que irá passar brilhantemente, em Junho de 1961, o que lhe permite ter acesso à faculdade sem esse fatal exame de admissão. No final de 1960, nas aulas da noite, um colega de estudo recruta-o para o Partido Comunista, então completamente clandestino, e ei-lo que começa uma formação de militante. Durante esse ano escolar de 1960-1961, ele tinha que preparar num ano os dois anos de letras que lhe faltavam, com as quatro cadeiras principais, inglês, alemão, latim e literatura portuguesa, e tinha que passar! Os dias passavam-se, assim, de uma forma um pouco ritual: de manhã, Emmanuel dormia, depois, cerca da uma da tarde, descia ao café para trabalhar durante seis horas, um estudo interrompido por algumas partidas de bilhar. Este café só era frequentado, das 10 da manhã às 9 da noite, por estudantes; a única mulher era a que estava ao balcão. Um café deste tipo era raro em Lisboa, era mais uma tradição de Coimbra. Às sete e meia, voltava a subir para jantar em casa sozinho, e às oito horas partia para as aulas de onde regressava depois da meia-noite, deitando-se cerca da uma ou duas da manhã.
Passa depois dois anos na Faculdade de Letras, a estudar filosofia grega, filologia inglesa, teoria da literatura e linguística. Mas trabalha sem grande convicção, militando muito a nível sindical.
Ao mesmo tempo, Emmanuel vai duas vezes por semana às aulas de harmonia e de contraponto da Academia de Música. Já tinha ouvido muita música e lido algumas partituras, tanto mais que uma muito antiga editora de Lisboa, a Sassetti, acabava de fechar e de saldar todo o seu stock de partituras de bolso! Assim, conhecia bem as obras musicais até Stravinski, Bartok e, evidentemente, Ravel e Debussy, mas não tinha ainda descoberto a Escola de Viena. Como esta formação especializada chegava tarde, ele sentia-se mais maduro, mais avançado nas suas ideias sobre música do que na sua aprendizagem e, sobretudo, na capacidade de escrever a sua própria música, segundo as suas ideias estéticas. Em casa, sozinho, fazia muitas análises ao piano, e continuava a improvisar durante horas, com aquilo que assimilara, ainda um pouco desajeitadamente, da linguagem de Bartok e de Prokofiev.
Pouco a pouco, Emmanuel começou a fazer regularmente crítica musical, já que a sua professora, Francine Benoît, lhe pedia para escrever e assinar as críticas dos concertos a que ela própria não podia assistir. A sua primeira crítica foi um elogio do pianista Pollini, que tinha então dezanove anos e acabava de ganhar o prémio Chopin de Varsóvia, em 1961.
Depois disso, quando entrou na Faculdade de Letras, existia ainda uma revista cultural mensal de esquerda, já antiga e de grande tradição, a Seara Nova, cujo director lhe pediu para fazer uma crónica dos concertos e uma crítica dos livros sobre música, o que ele fará todos os meses durante dois anos, até à sua partida definitiva de Portugal.
O professor de filosofia que ele tinha tido aos quinze anos era um grande melómano, e ele via-o com frequência nos concertos na época em que era seu aluno, mas depois perdera-o de vista. Um dia, na redacção da revista, o director deu-lhe um livro de René Leibowitz que acabava de ser publicado. Ironia do destino, reparou que a tradução tinha sido feita pelo seu antigo professor, mas que ele tinha traduzido sem conhecer, e sem se documentar, os termos musicais, o que resultava num texto grotesco onde, por exemplo, as semínimas (noires) eram as negras e a celesta (célesta) se tinha tornado Celeste! Emmanuel escreveu um artigo muito irónico e mordaz e o livro teve que ser retirado!
No ano de 1961-1962, um compositor francês, Louis Saguer, um músico muito culto, veio viver para Lisboa durante um ano e deu aulas na Academia. Deu a conhecer a Emmanuel toda a música contemporânea da época e de antes da guerra: a Escola de Viena, Stockhausen, Boulez.
Juntamente com Louis Saguer, a Academia tinha convidado um jovem pianista e compositor português, Jorge Peixinho, que era bolseiro há já cinco anos, e conhecia todo o meio musical internacional, tendo trabalhado com toda a gente: Boulez, Stockhausen, Nono… Era um ano mais velho do que Emmanuel e os dois ficaram amigos.
Durante este período, Emmanuel não compôs absolutamente nada. Quando Louis Saguer partiu, sentiu-se perdido e pediu-lhe que intercedesse junto de Lopes Graça para que este aceitasse dar-lhe aulas. Este pediu-lhe então a pior de todas as coisas: “Escreva uma peça e mostre-ma, senão não podemos trabalhar”.
No Verão de 1962, Emmanuel foi a Helsínquia e a Moscovo durante um mês, convidado pelas Juventudes Comunistas. Um pouco antes, tinha começado a escrever uma peça para piano para impressionar Lopes Graça e, a partir de Dezembro, começou a ter aulas com ele. Saguer tinha deixado Lisboa para regressar a Paris alguns meses antes.
Lopes Graça era o único músico português de envergadura, mas ficou sempre enfeudado à influência de Ravel e, sobretudo, de Bartok. Emmanuel ia a casa dele todas as semanas e, durante o primeiro ano, escreveu três peças: uma para piano, uma para flauta e piano e um quarteto de cordas. Depois disso, o professor aconselhou-o a deixar de compor até adquirir mais técnica. Deixou pois de escrever para trabalhar com ele o contraponto “moderno”.
Do ponto de vista humano, era uma relação simultaneamente muito cortês e amigável de parte a parte, e totalmente gratuita: o mestre nunca pediu qualquer retribuição ao seu aluno.
Emmanuel passou os meses de Fevereiro e Março de 1963 em Paris, um Inverno terrível e glacial, em casa de estudantes portugueses amigos, e ouviu pela primeira vez concertos do Domaine Musical, fundado por Pierre Boulez e Jean-Louis Barrault. Anteriormente, ouvira apenas um único disco trazido de Paris, com a Sinfonia op. 21 de Webern, Kontrapunkt de Stockhausen, extractos de Le Marteau sans Maître de Boulez e Incontri de Nono. Nessa época, ouviu as três primeiras obras vezes sem conta.
No Verão de 1963, Emmanuel foi pela primeira vez a Darmstadt com Jorge Peixinho que lá ia todos os anos. Comprou muitas partituras da Escola de Viena, algumas de Boulez e de Stockhausen e uma de Ligeti. Ouviu muita música, frequentando os concertos todas as noites e, de regresso a Lisboa, sentiu-se mais vivamente consciente da sua falta de conhecimentos. Dirá mais tarde: “Tinha a impressão de que tudo aquilo que tinha pensado sobre a evolução musical já estava feito, como se tivesse inventado uma bicicleta e visse passar, de repente, um avião. Estava na mesma situação em que, quando era adolescente, ouvia os meus vizinhos na ópera falar da música que eu acabava de descobrir”. Em termos de concertos, no entanto, no plano puramente auditivo, o seu gosto era já muito marcado, e não duvidava nunca das suas afinidades estéticas.
O ano de 1963-1964 foi o último passado em Lisboa. Emmanuel já não frequenta a Academia de Música, nem a Faculdade de Letras e abandona o Partido Comunista. Trabalha com Lopes Graça, em casa deste, e com Francine Benoît, em casa dela. Lopes Graça tinha começado a traduzir a Histoire de la Musique, da editora La Pléiade, e tinha-lhe confiado a tradução de alguns capítulos. Mais uma vez, nesse ano Emmanuel nada compôs, mas estudou muito.
No Verão de 1964, faz uma viagem com Peixinho: voltam a Darmstadt, depois vão a Munique fazer um estágio de iniciação à música electrónica dirigido pelo seu futuro professor, Henri Pousseur, e finalmente passam dois meses em Veneza, a frequentar os cursos de artes plásticas e de literatura na Fundação Cini, na ilha de San Giorgio.
Uma flautista holandesa que tinham encontrado em Munique vai buscá-los a Veneza para os trazer para Lisboa, já que tinham projectado dar um concerto de música contemporânea na Juventude Musical. Este concerto teve lugar em Outubro de 1964, com a apresentação, entre outras, de uma peça de Peixinho e uma de Nunes, escrita para a ocasião, para flauta, harpa, contrabaixo e percussão, onde tinha introduzido “todos os ingredientes de escrita recentemente adquiridos.” João de Freitas Branco, crítico emérito, escreveu então que, se não se soubesse que se tratava da sua primeira peça, ter-se-ia a impressão que ele tinha uma grande experiência de música contemporânea. No entanto, Emmanuel queimou integralmente essa peça, pouco tempo depois, em Paris: ela era apenas de circunstância. Já que os diplomas da Academia não eram reconhecidos da mesma forma que os do Conservatório, e que ser o único aluno em composição de Lopes Graça era uma espécie de extravagância, ele tinha esperado que o facto de estar no programa de um concerto da Juventude Musical o ajudaria a conseguir uma bolsa. Esperara em vão.
No início de Novembro de 1964, Emmanuel deixa Lisboa por sete anos, e vai viver para Paris até Setembro de 1965. Durante esse ano, trabalha sozinho num pequeníssimo quarto e lê muito, nomeadamente A la Recherche du Temps Perdu, de Marcel Proust. Exercitou-se então na técnica serial, tal como Boulez a tinha exposto nos seus escritos, e compôs três ou quatro peças como exercícios, os primeiros e os últimos estudos seriais de toda a sua vida. Depois, no final de Setembro, partiu para Colónia para trabalhar com Stockhausen, e também com Pousseur, e ainda com outros compositores que vinham fazer seminários, como Berio, que na altura foi muito afável com Emmanuel, incitando-o a ir visitá-lo sempre que estivesse na Europa, o que ele fez até ao final dos anos sessenta. Berio e Pousseur apoiaram vivamente um segundo pedido de bolsa junto da Fundação Gulbenkian, mas mais uma vez ela não lhe foi concedida. Emmanuel ficou dois anos em Colónia, regressando a Paris regularmente.
Até ao fim da sua estadia em Paris, durante o Verão e o Outono de 1965, escreveu a primeira peça que guardou no catálogo das suas obras: era um trio de cordas, Degrés, terminado pouco depois de Colónia. Durante esses dois anos, escreveu uma peça para grande orquestra, que permaneceu inédita, Seuils, e uma primeira versão do quarteto de cordas que em 1980 se iria tornar Esquisses, mas que então se chamava Le Voile Tangeant. Compôs também uma peça que foi tocada no final dos cursos, infelizmente com algumas folhas fora de ordem! Esta peça era para nove músicos e chamava-se então Degrés 2. Foi depois integralmente reescrita e aumentada em Paris, em 68-69, passando a chamar-se Un Calendrier Révolu. No entanto, permaneceu também inédita.
Entre 1966 e 1967, Emmanuel leu muitas obras de Freud e de Kafka, e releu Proust. Independentemente das interpretações ou das correntes psicanalíticas, que nunca conheceu verdadeiramente, a abordagem de Freud tornou-lhe possível, através da sua própria introspecção, a aceitação de toda a dimensão onírica ou comportamental da sua própria vida. Mais tarde, ao ler as obras de Jung, sugeridas por Marcel Beaufils, interessou-se por todos os elos simbólicos e históricos que ele estabelece entre os diferentes domínios do conhecimento, ainda que no plano da psicologia individual se tenha sentido menos envolvido.
As obras de Kafka, lidas em francês na época, e relidas mais tarde em alemão, fascinaram-no completamente, mas já não consegue reencontrar hoje as ideias e os sentimentos que surgiram aquando da sua descoberta. Em contrapartida, a releitura de Proust é ainda e sempre fértil, em particular as passagens em que o leitor se sente envolvido numa realização artística pessoal, ou seja, quando percebe a forma como a obra se constrói numa dupla dimensão, a cronológica, da vida das personagens, e a da própria visão de Proust, muito mais global e psicológica, da matéria do romance.
Durante os seus últimos cursos em Darmstadt em 1965, Boulez tinha apresentado a Suite Lírica de Berg e estabelecido um paralelo entre esta peça e a obra de Proust, pondo em evidência a presença, em cada uma delas, de uma escrita livre no interior de uma escrita rigorosa. Emmanuel tinha sido sensível a esta dualidade da escrita, em que um modo narrativo rigorosamente ligado aos acontecimentos se abre, de repente, para um espaço diferente, e em que a escrita abandona essa cronologia para criar diversos sentidos extra-temporais, nos modos analítico, simbólico, afectivo, como se já não houvesse a certeza de se estar na narrativa ou no pensamento.
Da mesma forma que toda a obra em construção se submete a esta dupla dimensão, a inspiração que a impele está enfeudada ao duplo movimento da livre imaginação e da realização concreta. Nesse sentido, Emmanuel guardou para sempre gravado na memória os versos do último dos Poèmes Saturniens de Verlaine, Epilogue.
Ah! L’Inspiration, on l’invoque à seize ans!
[…]
Ce qu’il nous faut à nous, c’est l’étude sans trêve,
C’est l’effort inouï, le combat nonpareil,
C’est la nuit, l’âpre nuit de travail, d’où se lève
Lentement, lentement, l’Œuvre, ainsi qu’un soleil!
Libre à nos Inspirés, cœurs qu’une œillade enflamme,
D’abandonner leur être aux vents comme un bouleau;
Pauvres gens! L’Art n’est pas d’éparpiller son âme:
Est-elle en marbre, ou non, la Vénus de Milo?
[…]
Aquilo que preocupava muito Emmanuel, era a distância entre o seu pensamento, a sua imaginação, as suas deduções, e essa falta de uma técnica pessoal que pudesse ligar as suas ideias à escrita musical em linha recta. A verdade é que esse elo nunca passou directamente pela escrita clássica que ele tinha aprendido anteriormente em Lisboa. Como se não tivesse estudado, essa técnica tradicional permaneceu isolada, não integrada como tal no seu pensamento, agindo apenas como um dos elementos do modo como se forjou a sua própria visão da evolução da escrita. Ele considera que a formação baseada unicamente na escrita clássica, mesmo levada ao extremo, o que não foi o seu caso, não pode, não deve ser mais do que um paradigma. Muito menos aspectos desta escrita transpareceriam mais tarde na técnica pessoal que está na base de uma obra, o que não quer dizer que, em diferentes épocas da evolução de um artista, incluindo a maturidade, ele não regresse a aspectos dessa formação, tal como a assimilou por sua própria conta.
No entanto, uma vez este problema resolvido para ele, gradualmente, ao longo do seu trabalho, e de uma forma bastante consciente, a música clássica continuou sempre a enriquecer a sua forma de consolidar o elo entre aprendizagem e originalidade. Durante longos anos, ouvira música de uma forma até excessiva e isso tinha funcionado como uma espécie de prova. Muito mais tarde, quando se viu por sua vez confrontado com a tarefa de ensinar composição, exprimiu esta problemática entre conhecimento e criação num texto escrito em 1984, intitulado Quase Uma Utopia: o paradoxo da originalidade:
“Durante toda a nossa existência enquanto compositores (e não só), produz-se no nosso interior uma espécie rara de contraponto, um contraponto de uma liberdade rigorosa, e de um rigor que, apesar da sua força hierática, não deixa de permitir a eclosão de movimentos inesperados que tornam subitamente livres e imprevisíveis as relações entre as vozes.
Admitamos, para que o possamos seguir facilmente numa primeira escuta, que ele seja a três vozes: um contraponto entre o INATO, o APRENDIDO e tudo aquilo que surge como o AINDA NÃO APRENDIDO. Esta última voz é testemunha de um tempo presente, sob uma forma incessante, e de uma projecção para o futuro, não menos incessante. O APRENDIDO fura, como se fossem ondas, desde o passado até ao presente, e ao mesmo tempo que nos dá um ritmo tranquilizador, faz-nos igualmente sentir uma enorme necessidade de o ultrapassar, de entrar em pé de igualdade num desconhecido que não precisa de ser aprendido para ser possuído. Há momentos em que o APRENDIDO desencadeia em nós uma força contrária à corrente, que nos lança na aventura do inaudito. De regresso, apercebemo-nos de que essa força se limita a lançar-nos numa escuta vertiginosa do cantus firmus que é o INATO, e que este desejo de criar o inaudito não é senão uma necessidade irresistível de cristalizar em som aquilo que há de mais original e autêntico no mais íntimo de nós mesmos. Mas, para lá da vertigem que esta escuta por vezes nos provoca, apercebemo-nos também que a originalidade precisa de ser mantida, de ser constantemente cultivada, trabalhada. Só pode atingir a sua realização suprema no interior desse misterioso contraponto. Não é temporal, mas a temporalidade das outras duas vozes é-lhe necessária para que possa testemunhar plenamente o seu poder de abolir a cronologia.”
Em Agosto de 1967, Emmanuel abandona os cursos de Colónia, regressa a Paris e reinstala-se num pequeno quarto, sozinho, sem qualquer contacto com músicos nem com a vida musical, embora frequente regularmente os concertos. Durante estes meses solitários, ouve e perscruta de forma obsessiva a Sonata de Liszt e as Metamorfoses de Strauss. O seu ritmo de vida tinha-se tornado muito mecânico, mas ele tinha necessidade disso, de tal forma as condições materiais da vida em Paris eram duras, quando comparadas com as da Alemanha. Levantava-se cerca da uma da tarde, trabalhava sozinho, depois saía às oito da noite para ir a pé a Saint-Germain-des-Prés, jantava sempre no mesmo pequeno restaurante, muito barato, e regressava por volta das onze ou meia-noite. Trabalhava ainda até às quatro da manhã e deitava-se pouco antes do amanhecer. Esta vida ritualizada protegia-o de uma divagação deprimente, já que não tinha quaisquer deveres a ligá-lo ao que quer que fosse, estudo ou instituição. Foi nesse pequeno quarto, onde viveu durante oito meses, que desenhou um grande número de figuras geométricas, nos cartões das tabletes de chocolate que consumia em grandes quantidades. Ao desenhar estas figuras, confrontava-se conscientemente com questões de equilíbrio formal equivalentes às suas reflexões no plano musical.
Nessa época, anota sumariamente as suas impressões sobre os cursos de Colónia:
“Primeiro impacto com a personalidade de Stockhausen, uma semana de ensaios de Momente e o seu resultado em Donaueschingen.
O contacto pedagógico e humano com Henri Pousseur, que está ligado à minha primeiríssima obra, isto é, à primeira que decidi guardar: Degrés.
Primeiro encontro com Berio.
Visages com Cathy Barberian, cujas aulas sobre interpretação vocal me voltam à memória.
Impacto. Contacto. Reencontro.
Geord Heike: o meu profundo reconhecimento pelos seus ensinamentos que me permitiram espreitar a imensidade da floresta virgem (ou quase) onde a fonética e o resto do universo sonoro se confundem. Apesar de todo o encorajamento que recebi por parte de Heike para iniciar um trabalho composicional nesse sentido, não era, para mim, o momento certo – e continua a não o ser agora - para empreender um tal trabalho.
As aulas de direcção de Herbert Schernus – maestro titular dos coros da Westdeutsche Rundfunk – com quem pude trabalhar em partituras como Momente, Microphonie 2 e a Histoire du Soldat. Eu, que seria a última pessoa da terra a desejar algum dia vir a ser maestro, tive nele o meu verdadeiro professor de solfejo.
Aproveitei bem a ausência quase total de participantes nos cursos de Georg Heike e de Herbert Schernus.” (Paris, 1967)
No ano seguinte, o pai compra-lhe um pequeno apartamento na rue Tournefort e, devido a um problema de sobrevivência económica, já que não pode obter nenhuma bolsa enquanto jovem compositor, Emmanuel inscreve-se no CNSM (Conservatoire National Supérieur de Musique) e em 1970 obtém a sua primeira bolsa de quatro anos do Ministério da Cultura português. Frequenta os cursos de escrita e de análise musicológica, como se tivesse necessidade de se proteger, de olhar para as suas lacunas, de se confrontar com a sua própria escrita. Recebe o primeiro prémio em estética em Junho de 1971, e obtém uma equivalência para se inscrever num doutoramento na Sorbonne, com um orientador que o apoiou extraordinariamente, tanto do ponto de vista humano como musical, Michel Guiomar.
Apesar da sua tese ter como tema principal a última obra de Webern, a Segunda Cantata, Emmanuel tinha escrito uma longa introdução em duas partes, a primeira sobre a história da linguagem musical até Webern, e a segunda sobre as mudanças sofridas pela expressão artística e pelas técnicas do início do século, sobretudo em Kandinski, Klee, no movimento Bauhaus e em Der Blaue Reiter. Foi, aliás, numa parte destes elementos que ele se baseou para escrever em 1997 um estudo sobre os textos de Kandinski.
Na primeira parte, Emmanuel Nunes passa em revista a evolução, ao longo de toda a história da música ocidental, das relações entre os diferentes parâmetros musicais (altura, ritmo, intensidade, timbre). A sua análise, ainda que sucinta, obstina-se em defender pontos de vista que, inequivocamente, usurpam as suas concepções enquanto compositor e os seus escritos até essa altura. É assim que se pode ler:
“Assinalarei para cada dimensão um conjunto de tendências que marcam a evolução do sistema tonal, e de resto a sua explosão. […] A progressão de um conjunto de tendências não se faz de uma forma linear e paralela à cronologia histórica. Sem excessiva abstracção, poderíamos dizer que todas as fases de cada tendência, e todas as tendências, coexistem em cada momento da evolução da música tonal, mas em doses diferentes. O mesmo se passa com as diversas modalidades de integração, a partir do momento em que se encara esta evolução como um percurso sinuoso, mas irreversível, em direcção à sua própria explosão.”
Mais à frente, tentando clarificar a sua abordagem à obra de Webern, prossegue:
“Todo este dinamismo multi-direccional do futuro musical e da sua percepção, exigem que nos debrucemos prioritariamente sobre o domínio poético. O espaço musical será o limite para o qual tenderá a nossa investigação, no sentido em que cobre, ultrapassando-os, as manobras reais, a vida e o comportamento de todas as dimensões que se manifestam numa obra, quer dizer, o resultado de um acto composicional para sempre irrecuperável na sua integralidade.” Durante esses três anos, de 1967 a 1970, Emmanuel trabalha só. Alguns músicos franceses que conhecera em Colónia incitam-no a ir bater a várias portas, grupos, pessoas, para ir mostrar a sua música, o que ele acaba por fazer. Por exemplo, com Diego Masson que tinha fundado o grupo Musique Vivante, ou Marius Constant que dirigia o grupo Ars Nova, ou ainda Gilbert Amy no Domaine Musical. Mas nenhuma destas abordagens acabou alguma vez num concerto. Assim, até 1974, Emmanuel não teve nenhuma vida pública como compositor em Paris.
No entanto, é nesta época que compõe as Litanies du Feu et de la Mer I, em 1969, e II, em 1971, peças para piano, sobre as quais escreve:
“Um universo harmónico muito exclusivo – quer dizer, que se recusa a relacionar-se com tudo aquilo que não é capaz de integrar ou de relativizar em relação a si mesmo – impôs-se-me desde o início. Quase não foi preciso procurá-lo. Uma realidade não menos exclusiva era a do piano, já que não se tratava de todo de me servir dele, mas de o servir, de ser capaz de o revelar.” (Programa do concerto de 20 de Maio de 1976, na Fundação Gulbenkian, em Paris.)
Foi também em 1970 que, pela primeira vez, a Fundação Gulbenkian contactou Emmanuel Nunes e lhe propôs uma encomenda. Esta viria a ser Purlieu, para 21 cordas, retiradas da orquestra mozartiana da Fundação, que ele não queria utilizar tal como estava. Esta obra foi tocada em concerto na Fundação, em Lisboa, em Dezembro de 1971. Era a primeira vez que ouvia tocar a sua música enquanto compositor e, em sete anos, era também a primeira vez que regressava a Portugal, à excepção de uma breve visita, quatro meses antes, para o funeral do pai, em Julho de 1971. Tinha então trinta anos.
Para esta importante primeira estreia da sua música, Emmanuel assistiu aos ensaios, ouviu, trabalhou com os músicos, mas o concerto em si deixou-lhe uma impressão estranha, como se tivesse durado muito tempo e não tivesse ouvido nada, um fenómeno profundamente ligado à total ausência de experiência auditiva da sua própria música, uma espécie de medo do palco nos ouvidos, que o impediu de ouvir de forma objectiva. Uma coisa destas nunca antes lhe tinha acontecido, e foi por isso que não a esqueceu. A mãe assistiu a este concerto, e depois disso, passou a frequentar todos os concertos que o filho dava em Lisboa.
A partir dessa altura, Emmanuel teve encomendas regulares da Fundação Gulbenkian e, dois anos mais tarde, do Ministério da Cultura francês, mas nunca quis aceitar várias encomendas ao mesmo tempo ou com efectivos instrumentais impostos. Havia uma profusão de encomendas possíveis para um ou dois instrumentos e, querendo, era possível fazer três ou quatro por ano! Em França, nessa época, a conjuntura da política musical permitia a quase todos os compositores terem um ano uma encomenda do ministério, no ano seguinte uma encomenda da Radio France, e depois todos os solistas queriam também uma peça para eles! Devido à sua forma de trabalhar, Emmanuel nunca pôde fazer isso de forma sistemática já que, para cada peça, era guiado por imperativos de efectivo instrumental que ele fazia questão de não alterar nunca por razões materiais exteriores aos seus projectos.
Em 1972, deixa o CNSM e começa a preparar a tese. Recebe uma segunda encomenda da Fundação Gulbenkian, Dawn Wo, para treze sopros. Na primeira peça tinha escolhido apenas cordas, na segunda, escolheu os sopros, mais uma vez retirados da orquestra mozartiana da Gulbenkian.
Depois da encomenda de Purlieu em 1970, um colega de curso de Colónia, Gérard Masson, apresentou Emmanuel Nunes a um amigo, André Jouve, que trabalhava na altura nas edições Jobert. Foi por seu intermédio que Emmanuel entrou para esta editora, que publicou Purlieu para o concerto de Lisboa. André Jouve tornou-se um amigo, o único parisiense que o acolheu e recebeu amigavelmente em sua casa, e foi na altura a única família que ele frequentou em Paris.
No final de 1972, André Jouve ocupa-se da edição de Dawn Wo e desloca-se a Lisboa para assistir à estreia da peça, em Fevereiro de 1973. Depois do concerto, enquanto jantam juntos, confidencia a Emmanuel que vai deixar as edições Jobert para se tornar director artístico da Orchestre de chambre de la Radio (ORTF), e também responsável por uma nova série de concertos: Perspectives du XXème siècle. Diz-lhe também que tem a intenção de lhe consagrar um concerto e de lhe fazer uma encomenda, que estaria prevista para 1974. Estavam programadas duas peças: Purlieu, e a nova peça para a qual Emmanuel lhe tinha pedido o coro da Radio France, porque queria muito aplicar as suas ideias sobre as relações entre fonética e música, que ambos tinham frequentemente debatido. Mas a obra não pôde ser apresentada por razões sindicais, já que requeria 7 grupos de 4 cantores e cada voz, mesmo quando as notas eram as mesmas, tinha sílabas diferentes. Recebeu uma carta do responsável administrativo do coro, dizendo-lhe que, se assim fosse, as 28 vozes queriam todas ser pagas como solistas, o que implicava um orçamento exorbitante, e portanto anulava a encomenda e o concerto!
Na sua carta de resposta, de 10 de Abril de 1974, o compositor, depois de ter descrito o grau de dificuldade de cada parte da obra, escrevia: “Posso afirmar que não é de maneira nenhuma mais fácil cantar correctamente um madrigal de Monteverdi!” Esta peça coral iria tornar-se Voyage du Corps, e só foi estreada em 1975, no Festival de Royan, pelo Ensemble vocal de Pau, dirigido por Guy Maneveau.
O primeiro concerto de Emmanuel Nunes em Paris realizou-se pois, em 1974, na velha sala Pleyel, onde a orquestra de câmara da ORTF interpretou Purlieu. Foi na época em que a Casa Sassetti, reconvertida em editora de discos, decidiu gravar em Paris o seu primeiro disco, com Degrés e Impromptu pour un Voyage I, interpretados pelo trio de cordas francês, o Trio Debussy, com a participação do trompetista Jean-Jacques Greffin. Foi Michel Guiomar que redigiu o texto para o disco e, a propósito de Degrés, nota:
“Este trio, escrito em 1965, quando Emmanuel Nunes era ainda discípulo de Stockhausen em Colónia, revela simultaneamente certas filiações da sua estética e as premissas que as suas primeiras obras continham já, e que hoje se realizam plenamente. Por um lado, o conhecimento absoluto de Berg e a afinidade com a austeridade de Webern, com o seu lirismo levado ao extremo, com o seu equilíbrio entre os instrumentos, num contraponto de enunciado essencial; por outro lado, uma riqueza pessoal de entoações e de transmutações de influências mais profundas, a propósito das quais deveríamos talvez invocar aqui a radicação em certos grandes pontos de referências históricas do pensamento de Emmanuel Nunes.”
Foi também em 1974 que compôs Impromptu pour un Voyage II, trio para flauta em sol, viola e harpa, que ele apresenta desta forma:
“Desde o início da montagem da obra, cada intérprete deve observar com atenção os limites prescritos pela partitura, no interior dos quais poderá “construir” a sua liberdade de acção. Todas as partes do texto foram concebidas e formuladas de forma a que o intérprete, ao escutar-se a si próprio tocar, possa aí encontrar em cada momento uma resposta inequívoca à questão: “Aquilo que eu estou a tocar, é permitido?” Esta questão recorta muito evidentemente todas as dimensões sonoras e a sua utilização.” (Programa do concerto de 20 de Maio de 1976)
Esta dimensão, que dava tanta importância à improvisação, presente também em Impromptu pour un Voyage I e The Blending Season, já não aparece nas obras seguintes.
Durante esses anos de 1974 e 1975, Emmanuel interessou-se muito pela filosofia hebraica, lendo a Bíblia e Martin Buber, cujo pensamento poético o tocava particularmente. Estes textos estabeleceram uma ponte com as leituras feitas durante a sua passagem pelo CNSM, em casa de Marcel Beaufils, como Mircea Eliade, ou André Schaeffner, mais ligado à música e à mitologia sonora, assim como a certos aspectos da música extra-europeia.
No pensamento hebraico, tal como o encontrou em Buber, Emmanuel foi sensível à ideia de que, por um lado, não se pode ter acesso a uma revelação sem ensinamento, e que, por outro lado, não é só o ensinamento que conduz à revelação, mas que há sempre um salto. Em 1977, escreverá num auto-retrato:
“A composição é um combate contra o silêncio, contra o não-sonoro. O silêncio é tudo aquilo que escuto em mim e que, no entanto, não se pode tornar música. E seria ideal se, através de uma perfeita ‘capilaridade’ entre todos os estratos da minha consciência e do meu inconsciente, o meu acto de composição ficasse livre da contingência da minha existência cronológica.”
E citará Buber:
“Fica a saber que cada palavra é uma forma perfeita e que é preciso estares com toda a tua força no seu interior.” (Publicado no programa das Donaueschinger Musiktage de 1977.)
São influências que permanecem nele sem forçosamente virem à superfície com clareza. A revelação para ele não foi a de Deus já que, no pensamento judeu, o ensinamento vai sempre nesse sentido, mas o eco da sua própria experiência de aprendizagem, que ele exprime desta forma:
“Quando me meto a aprender qualquer coisa, há sempre um momento em que vejo isso como um salto, onde de repente sei mais do que já aprendi, como se um mundo de ideias se abrisse, sem que cubra aquilo que já sei, e tenho que voltar a trás para aprender outras coisas que faltam. Neste processo, seria mais uma síntese que levaria à análise, do que o contrário. Não me importo de brincar ao aprendiz de feiticeiro, na condição de ter a certeza de me tornar mestre antes que tudo pegue fogo!”
Em Abril de 1975, Emmanuel foi convidado pela primeira vez para o Festival de Royan, onde duas das suas peças foram estreadas: Omens I e Voyage du corps. De regresso a Paris, à rue Tournefort, durante o Verão e o Outono de 1975, reescreve Omens que se torna Omens II, deixando a primeira de existir. Depois, até Dezembro de 1975, compõe Minnesang, peça para 12 vozes mistas a cappella, que foi estreada em Paris, em 1981, pelo Groupe Vocal de France, dirigido por John Alldis.
“Desde 1974 até ao Outono de 1975 – altura em que empreendi as primeiras diligências que iriam levar à composição de Minnesang – a leitura de Jacob Boehme foi um dos meus centros de gravitação, simultaneamente o mais absorvente e o mais afastado das minhas preocupações estritamente musicais.”
Com efeito, os textos de Minnesang pertencem a diversas obras de Jacob Boehme estudadas numa antologia publicada sob a direcção de Charles Waldemar (Jakob Böhme, der schlesische Mystiker, Goldmanns Gelbe Taschenbücher, 1959). A tradução, um pouco modificada, foi tomada de empréstimo a Louis-Claude de Saint-Martin nas seguintes reedições: L’Aurore naissante ou la racine de la philosophie, de l’astrologie et de la théologie, Archè, 1977; De la triple Vie de l’Homme, selon le mystère des trois principes de la manifestation divine, écrit après une élucidation divine, Éditions d’Aujourd’hui, 1984; Quarante questions sur l’origine, l’essence, l’être, la nature et la propriété de l’âme, et sur ce qu’elle est d’éternité en éternité, Arma Artis, 1984. (O texto completo de Minnesang e todas as referências bibliográficas foram publicados no programa do Festival de Outono em Paris, de 18 de Outubro de 1996.)
Foi também a partir de 1976 que Emmanuel começou a dar alguns concertos em Paris. Tristan Murail era, na altura, director do Itinéraire, e depois de ter ouvido, em Royan, Voyage du corps, programou e estreou nos concertos do Itinéraire, até 1978, obras como Dawn Wo, Nachtmusik I, The Blending Season, num teatro perto das Arts et Métiers – o Carré Sylvia Monfort. Entre 1975 e 1978, irá dar concertos em França, na ORTF, assim como com o Itinéraire e o Ensemble Vocal de Pau.
Quando Luís Pereira Leal tomou a direcção do serviço de música da Fundação Calouste Gulbenkian, em Lisboa, instaurou-se um ritmo regular de encomendas e de concertos, motivados por um interesse genuíno e por um conhecimento real da sua música. Na programação dos Encontros de Música Contemporânea que decorriam todos os anos em Lisboa, em Maio, foram apresentadas várias retrospectivas das obras de Emmanuel Nunes. Há vinte e cinco anos que Luís Pereira Leal defende a sua obra e ao longo do tempo foi nascendo entre eles uma amizade feita de uma afinidade pessoal que ultrapassa completamente as suas funções respectivas, como compositor e director musical. A partir de 1982, Emmanuel Nunes passou a ser regularmente convidado a dirigir seminários de composição na Fundação Gulbenkian em Lisboa.
No final de 1975, a Fundação Gulbenkian faz mais uma encomenda a Emmanuel Nunes, para uma orquestra com um efectivo semelhante ao de Fermata, composta em 1973 e retirada do catálogo: orquestra com sopros e metais a dois, piano, harpa, percussões, cordas e fita magnética. A estreia deveria ser em Lisboa, mas teve que ser adiada por duas vezes, porque ele não conseguia acabar a partitura. Tratava-se de Ruf, “apelo” em alemão. Em Janeiro de 1977, ele escreve:
“Desde a primeira gestação da matéria de base (possuindo já uma vida corporal e psiquicamente sonora) até à conclusão da partitura, recusei qualquer princípio de desenvolvimento baseado na expansão ou explosão de uma forma inicial destinada a preencher um tempo que, à partida, lhe era estranho. Cada entidade (existindo através de um ou de vários parâmetros) devia actualizar desde o nascimento a integralidade da sua vida, guardar intacta a sua identidade e morrer temporariamente ou definitivamente sem qualquer sinal de usura. Um grau superior de complexidade só podia pois resultar da concomitância num mesmo espaço sonoro de várias entidades, como uma espécie de contraponto de vidas irredutíveis.
O acesso a uma tal forma de vida (expressão utilizada aqui no sentido que lhe pode dar, por exemplo, um biólogo ou um mineralogista) teve por origem, em mim, o conhecimento progressivo, ao longo destes dois últimos anos, daquilo a que chamaria a génese e a motivação primordial do Apelo. A trilogia Apelante-Apelo-Apelado pode ser reduzida no tempo, e por intermitências mais ou menos longas, a circuitos fechados de dois, de onde o terceiro é banido: a união Apelante/Apelado exclui o Apelo. O Apelante, escutando incessantemente o Apelo, esquece a trajectória em direcção ao Apelado, identifica-se com este último ou quebra o seu impulso para ele. O elo Apelo/Apelado permanece para o Apelante um mistério. Como se nos obstinássemos em dividir indefinidamente 2 por 3.
O Apelo está presente em todas as manifestações da Matéria e do Espírito, emana delas sob uma multiplicidade de rostos, mas encontra talvez no SOM a encarnação última do seu verbo. (…)”
Ruf foi dedicada ao compositor vietnamita Ton That Tiêt, e foi estreada, por iniciativa de Harry Hallbreich, no Festival de Royan, na Páscoa de 1977, pela orquestra SWF de Baden Baden, sob a direcção de Ernest Bour. Foi o primeiro contacto de Emmanuel com este maestro, uma relação de início difícil mas que, progressivamente, se transformou numa grande amizade. O concerto teve um sucesso extraordinário. Depois disso, Ernest Bour e a orquestra quiseram tocar Ruf no Festival de Donaueschingen, onde a peça foi apresentada em Outubro de 1977. Joseph Häusler, enquanto foi director artístico deste festival, programou diversas obras de Emmanuel Nunes, sendo aí estreadas Nachtmusik II, em 1981, e Wandlungen, em 1986. Também o director da rádio de Berlim na altura, Peter Bockelmann, depois do concerto de Royan, lhe perguntou se aceitava passar um ano em Berlim, como bolseiro da Deutscher Akademischer Austausch Dienst. E foi assim que Emmanuel partiu para Berlim no ano seguinte, em Outubro de 1978.
Nesse ano de 1997-78, Emmanuel ficou pois em Paris, onde deu os seus últimos concertos com o Itinéraire, tendo estreado Nachtmusik I e a última versão de The Blending Season. Além disso, reescreveu cerca de 200 páginas de Seuils, peça inédita para grande orquestra.
Em Outubro de 1978, Emmanuel Nunes parte pois para Berlim onde, em Janeiro de 1979, nascerá a sua filha Martha e onde passará catorze meses durante os quais, embora componha algumas peças específicas, como Einspielung I para violino, a primeira parte de Tif’Ereth e Chessed I, trabalhará essencialmente no desenvolvimento de métodos, de estratégias, de relações que estarão presentes em todas as obras do ciclo a que ele chamou A Criação e que comporta actualmente mais de vinte de peças. De uma forma diferente, vai ser de novo interiormente confrontado com fases de reajustamento entre esta colocação geral e “anónima” de toda a espécie de ideias e de métodos e a sua concretização nesta ou naquela obra. É, num plano completamente diferente, o mesmo questionamento que anteriormente se colocara entre a sua formação musical e as suas ideias criativas.
Joseph Häusler queria que Emmanuel voltasse ao Festival de Donaueschingen com uma encomenda do SWF. Como tinha a intenção de prosseguir a sua ideia de espacialização de um efectivo orquestral, a criação daquilo que iria de facto ser a primeira parte de Tif’Ereth foi decidida para o Festival de 79. As condições acústicas da sala onde o concerto deveria ter lugar eram particularmente propícias, e além disso era mais uma ocasião para Emmanuel trabalhar com Ernest Bour, que devia dirigir a orquestra pela última vez. Começou a escrever a peça mal chegou a Berlim, mas o seu trabalho ganhou uma tal amplitude que os copistas se viram impossibilitados de cumprir os prazos, e ele foi obrigado a anular o concerto, que foi adiado para o ano seguinte. Entretanto, Ernest Bour tinha partido, a administração do SWF quis impor dois outros maestros, e o compositor acabou por recusar a estreia da obra. Acabaria por ser uma outra peça, Nachtmusik II, a ser encomendada e estreada no Festival de Donaueschingen, em 1981.
No Outono de 1979, Emmanuel fez uma viagem a Israel, por iniciativa do maestro chileno Juan Pablo Izquierdo, na época maestro residente da Orquestra Gulbenkian, com o qual travara amizade, e que dirigia também com regularidade em Israel. Era amigo da directora e fundadora do Festival Testimonium, a escritora Recha Freier e, nesse ano, tendo que dirigir uma parte do festival, quis que uma obra de Emmanuel fosse estreada nessa ocasião. O compositor encontrou-se em Paris com a Senhora Freier, que lhe pediu para ter em atenção um texto que ela lhe iria enviar, por ela escolhido, extraído do Zohar.
Esta peça viria a ser Chessed I e seria apresentada em Jerusalém e em Tel Aviv, em Outubro de 1979. O Le Monde de 5 de Novembro de 1979 publica uma apreciação da obra, pela pena de Jacques Longchamp:
“A obra de Emmanuel Nunes (português de trinta e oito anos que é uma das revelações destes últimos anos) sobre La Mort du Rabbi Simeon bar Yohai, ainda que puramente sinfónica, penetra no coração desse belo texto extraído do “Livre du Splendeur” (fim do séc. XIII), cheio de misticismo, de luz e de serenidade. Quatro reduzidos grupos de instrumentistas (cordas, flautas e clarinetes), colocados a alguma distância uns dos outros, tecem uma grande tapeçaria contemplativa feita de fios entremeados de cores subtis, cheia de cantos de pássaros, de raios de luz fosforescente, de pulsações graves. Uma dialéctica de meditação puramente interior, onde cada som vive e vibra em simpatia com os outros, emergindo e fundindo-se no colectivo, produz uma espécie de irradiação rara, de graça musical profunda e comovente.”
No final de 1979, Emmanuel deixa Berlim para ir viver perto de Colónia, onde permanecerá até 1992, ainda que mantendo um contacto estreito e permanente com a vida musical francesa.
Em Abril de 1980, a série de concertos Perspectives du XXème siècle na Radio-France, cujo produtor era Alain Bancquart, consagra-lhe um dia, em que são tocadas várias das suas obras, entre as quais Ruf, seguido de A Canção da Terra de Mahler. Numa entrevista com Alain Bancquart, Emmanuel dizia então:
“Considero a minha vida de compositor como um percurso iniciático. […] A propósito de Ruf e do conjunto da minha obra, gostaria de dizer que nunca trabalhei na contingência histórica. Mesmo na altura em trabalhei e analisei as obras e os escritos de Pierre Boulez, não tinha qualquer problema de relação estética ligada à técnica serial ou não serial. Só posso conceber uma única posição intemporal em relação a qualquer tipo de música. Ouço muita música de todas as épocas e capto constantemente correntes subterrâneas ao longo da história, que não são nunca ou quase nunca aquelas que se encontram nas análises. Essas correntes parecem-me apagar o tempo histórico.”
Sob proposta de Alain Bancquart, o Ministério da Cultura francês atribui-lhe em 1980 uma bolsa de criação. Para a primeira digressão do Ensemble Intercontemporain em Portugal, recebe uma encomenda conjunta do EIC e do ministério. Musik der Frühe, para dezoito instrumentos, será estreada em Lisboa, a 30 de Maio de 1980, sob a direcção de Peter Eötvös. Foi depois revista em 1984 e 1986, e apresentada em Frankfurt, a 26 de Abril de 1987, pelo Ensemble Modern e Ernest Bour.
No ano seguinte, em 1981, Alain Durel convida-o para o Festival de La Rochelle, onde são tocados Nachtmusik I, pelo Ensemble Intercontemporain, e os três Einspielungen. Gérad Condé escreverá então no Le Monde:
“De Emmanuel Nunes, descobrimos as três partes de Einspielung, encomendadas pela Fundação Gulbenkian. A primeira, para um único violino (1979), estreada por Charles Frey, articula-se em torno de um ré grave, presente do início ao fim da composição e a partir do qual se elabora uma verdadeira polifonia, segundo um processo bastante análogo, para o ouvido, àquele que Bach utilizou nas suas Suites: a melodia segrega uma polifonia, através da persistência ou do retorno a certas alturas. Einspielung II, para violoncelo, que já tinha sido tocada por Alain Meunier na Radio France (Le Monde de 25 de Abril de 1980), apresenta-se de uma forma muito diferente: começa por uma sucessão de traços bastante difíceis de ouvir, mas que gradualmente se vão inscrevendo numa harmonia cada vez mais envolvente, e até consonante, sendo os dois pólos de atracção o dó grave e o lá agudo. Finalmente Einspielung III, para viola, interpretado por Gérard Caussé, toma como centro de gravidade o sol da terceira corda do instrumento, mas escapa a uma descrição tão redutora; a sua especificidade torna-se mais clara quando em oposição às outras duas partes. No entanto, aquilo que chama a atenção é a grande parte reservada ao registo grave (o mais sonoro) do instrumento, e que actua como contrapeso de certas passagens de grande virtuosismo no agudo.
Estes três solos, em que nenhum é de modesta dimensão, têm em comum uma utilização absolutamente clássica dos instrumentos, em oposição a uma tendência que parecia irreversível. Fazendo-os soar de acordo com o seu destino primeiro, Nunes devolve-lhes esse calor e essa qualidade de timbre, que por vezes julgamos incompatíveis com a escrita contemporânea.”
É também em 1981, depois da estreia de Nachtmusik II, para orquestra, no Festival de Donaueschingen, pela orquestra SWF de Baden Baden dirigida por Kasimir Kordj, que Emmanuel começa a composição de Vislumbre, peça para coro misto, sobre uma quadra de Mário de Sá-Carneiro, que foi interrompida, e depois concluída em 1986. Seria estreada em Maio desse mesmo ano, em Lisboa, pelo coro Gulbenkian dirigido por Fernando Eldoro. Eis o poema que serviu de base a esta obra:
Vislumbre
A horas flébeis, outonais –
Por magoados fins de dias –
A minha Alma é água fria
Em ânforas d’Ouro… entre os cristais…
Em 1982, uma nova peça, Grund, uma encomenda do Ministério da Cultura francês, fica concluída. Emmanuel descreve-a assim:
“Grund, para flauta alto solo e oito flautas alto e/ou baixo pré-gravadas, constitui a décima primeira de uma família de obras – “A Criação” – que iniciei em 1978. Trata-se de uma polifonia pensada a partir dos modos de interpretação actuais e dos seus constrangimentos sonoros. A peça impõe-se como o estudo de uma linguagem coerente construída sobre uma intersecção de exigências da escrita e das limitações (parâmetros de liberdade) das novas técnicas.
Como em qualquer polifonia, a dimensão rítmica tem um valor primordial. […]
O aspecto da repetição, e a recorrência a diferentes formas ao longo da peça, conduzem a um resultado musical que nada tem a ver com nenhum dos “ramos” da música repetitiva, cuja estética e postulados intelectuais me são totalmente estranhos. Sempre me surgiram como máscaras carnavalescas das Grandes Músicas de outras partes (Índia, Bali, etc.) […] Penso, que em todos os tempos, uma certa imobilização desta ou daquela dimensão do discurso musical e uma incessante adequação deste aos diferentes graus de mobilidade desta ou daquela levam a que, entre estas dimensões, se dê uma profunda transformação das relações de força, de que um dos aspectos mais importantes é a mutação de responsabilidade de uma dimensão numa outra, no que diz respeito ao seu papel na concretização daquilo a que chamei o alcance teleológico do gesto musical.”
A partir desta altura, Philippe Albéra, fundador e director artístico do Ensemble Contrechamps, de Genebra, contribuiu grandemente para dar a conhecer a música de Emmanuel Nunes. Convidou Pierre-Yves Artaud para ir a Genebra para a estreia de Grund, peça para flauta e fita magnética de oito pistas (oito flautas pré-gravadas), a 17 de Janeiro de 1983.
Em 1983, André Jouve, sabendo que Emmanuel queria prosseguir a escrita de Tif’Ereth, propõe-lhe integrar a peça nas comemorações do ano Bach, em 1985. Foi graças a ele que a União Europeia de Radiodifusão fez a encomenda para a totalidade da peça, mas para Emmanuel esta obra ficaria para sempre incompleta.
Depois de concluir a segunda parte de Tif’Ereth, no Outono de 1985, Emmanuel Nunes, a convite de Pierre-Yves Artaud, dá um curso de uma semana no Ircam, para o quarto estágio do Atelier de Recherche Instrumentale. Este curso, intitulado “A atitude instrumental”, abordava, entre outras, a ideia de um certo número de paralelos entre a atitude interpretativa e a atitude composicional, as suas projecções no tempo, a sua teleologia. Além disso, acentuava a sua convicção de que a COMPLEXIDADE ACÚSTICA não desencadeia nunca por si só a COMPLEXIDADE MUSICAL.
Tif’Ereth, peça para seis instrumentos solistas e seis grupos orquestrais, dirigidos por dois maestros, foi pois estreada em Paris, no âmbito dos concertos da União Europeia de Radiodifusão, no dia 9 de Dezembro de 1985. Emmanuel Nunes, numa tripla homenagem, escreveu a sua obra “para os trezentos anos do nascimento de João Sebastião Bach, os cem anos do nascimento e os cinquenta anos da morte de Alban Berg, e o sexagésimo aniversário de um compositor vivo”. Muitos anos mais tarde, ele esclareceria que se tratava de Pierre Boulez.
Na sequência da primeira execução de Tif’Ereth em Itália, em Turim, o musicólogo Massimo Mila escreveu no La Stampa em Maio de 1987:
“A impressão de assombrosa grandeza e, acima de tudo, de originalidade, produzida no ano passado por Ruf, é plenamente renovada. […] Quando escutamos Nunes, esquecemo-nos de todas as “posições” que disputam o campo da música contemporânea. Expressionismo, dodecafonismo, tonalidade, atonalidade, politonalidade, todas se tornam expressões vazias de sentido. Há, pelo contrário, uma impressão de grandeza, de positividade elementar, de força […]. Serão precisas muitas dezenas de anos para trazer à luz os segredos estruturais desta música. No entanto, gostaria de arriscar um início de interpretação. O que é que tocam os instrumentos de Nunes? Tocam exactamente aquilo que está na sua natureza tocar. Não estão lá, como é costume, para “traduzirem” um pensamento musical, estão lá simplesmente para tocarem, livres e activos. Daí, a impenetrável naturalidade deste compositor excepcional, excepcional porque não se parece com ninguém.”
Emmanuel regressa a Darmstadt em 1986, pela primeira vez desde os seus tempos de estudante, e a última até agora, com a equipa do Ircam, para dirigir seminários de composição. Nesse mesmo ano, é convidado para dar aulas na Musikhoschule de Freiburg in Breisgau, que abandonará em 1991, em desacordo com a nomeação do novo director do departamento de música contemporânea.
Pela primeira vez, Emmanuel Nunes, Ernest Bour e o Ensemble Modern vão reunir-se para trabalhar na criação de Wandlungen, cinco Passacaglie para vinte e cinco instrumentos e electrónica em tempo real ad libitum, no Festival de Donaueschingen de 1986. A peça é dedicada ao compositor português João Rafael; o título é uma palavra alemã que contém a ideia de transformação, de mutação. Num texto intitulado “Le banissement du gris” (“O cinzento banido”), o compositor evoca a gestação da obra: “[…] Reflexões em forma de relâmpago sobre o número 5, aceitação dos seus imperativos, e interpretação subjectiva dos seus potenciais.
O número 5 como constante de uma multiplicidade de funções retóricas e formais. […]
Que o conjunto do discurso harmónico seja duma luminosidade quase estonteante, por vezes crua. […]
Que duas contradições sejam banidas: a regularidade irregular (receosa de o ser) e, sobretudo, a irregularidade regular. […]”
No âmbito das Nuits de la Fondation Maeght, foi-lhe encomendada uma obra que viria a ser Duktus, estreada em Saint-Paul-de-Vence em 1987, durante um concerto monográfico pelo Ensemble Modern dirigido por Ernest Bour, onde foi também interpretada Musik der Frühe. Num texto posterior, João Rafael esclarece:
“A palavra Duktus em alemão está associada aos diferentes tipos de fluidez da escrita, isto é, à maneira pessoal de escrever, tanto no seu aspecto caligráfico (desenho, linha) como no seu aspecto estilístico (literário). […] A ideia principal da peça é de facto a constituição de uma única linha monódica, de um único fluxo melódico que percorre a obra e ao qual será dada forma ao longo do seu desenvolvimento.”
Em 1988, a versão completa de Clivages foi estreada pelas Percussions de Strasbourg, em Turim. João Rafael analisa assim a obra:
“Como material rítmico desta peça, Emmanuel Nunes utilizou as seis fórmulas rítmicas que tinham sido o ponto de partida para a composição de Minnesang. […] Um dos aspectos mais interessantes e inovadores de Clivages (sobretudo na segunda peça) é talvez a forma como os timbres dos diferentes instrumentos de percussão conseguem ultrapassar a sua mera presença físico-acústica individual (enquanto informação de timbre que permite a identificação da sua origem instrumental), tornando-se elementos de uma linguagem musical coerente, através da utilização dessas mesmas qualidades sonoras, as quais se vêem atribuir funções equivalentes às dos vocábulos, sílabas, consoantes, vogais, etc. numa língua. Organizados depois em “palavras”, “frases”, etc., estes elementos adquirem no desenrolar do discurso um significado musical que ultrapassa a sua existência acústica individual, da mesma forma que, na linguagem falada, diferentes combinações das mesmas sonoridades (vogais, consoantes, sílabas, etc.) podem exteriorizar conteúdos semânticos diversos (conforme o agrupamento específico dessas sonoridades, o contexto, a entoação, etc.). Esses conteúdos situam-se muito para além da adição pura e simples de tudo aquilo que já estava “subentendido” nas sonoridades individuais em presença.”
Quodlibet, composto entre 1990 e 1991, é uma peça para seis percussões, vinte e oito instrumentos e orquestra, com cerca de 57 minutos de duração, que será estreada no Coliseu de Lisboa em Maio de 1991, pelo Ensemble Modern, as Percussions de Strasbourg e a Orquestra Gulbenkian, sob a direcção de Mark Foster e de Emilio Pomárico.
Emmanuel está muito ligado ao Coliseu desde a infância, e descreve-o da seguinte forma, num texto de 1995, intitulado “Un espace de temps” (“Um espaço de tempo”), (publicado em 1997, numa obra colectiva: Nähe und Distanz, volume 2, sob a direcção de Wolfgang Gratzer, nas edições Wolke, em Hofbeim, Áustria.):
“No final dos anos 40 e no início dos anos 50, (re)encontrei-me muitas vezes numa sala de espectáculos de dimensões pouco habituais, construída mais ou menos na mesma época que o metro de Paris, e à qual se chamaria hoje uma sala polivalente.
Era lá que ia assistir a grandes espectáculos de circo, ou a encontros de ginástica. O fascínio que tais espectáculos exerciam sobre mim era de cada vez sempre esperado e sempre maior, sobretudo porque a sensação de um imenso espaço fechado tomava posse dos meus olhos e dos meus ouvidos, muito antes do início do espectáculo.
Ao chegar ao camarote depois de percorrer corredores sombrios, era preciso esperar que um funcionário nos viesse abrir a porta (como se fosse um antigo guarda-nocturno), e quando podia enfim entrar e ter uma visão total da sala, procurava durante longo tempo a forma de orientar e sincronizar o meu olhar em função de uma infinidade de PICOS SONOROS, que emergiam de uma massa de cerca de três mil pessoas, que assim me iam fazendo tomar consciência, através do ouvido, de um tal espaço. Os olhos partiam em busca dos sons, enquanto os ouvidos me deixavam adivinhar as distâncias e davam ao meu olhar uma tessitura e uma duração sempre diferentes.
Quando, no final dos anos 50, lá ia para ouvir intérpretes prestigiados de música clássica, ou para assistir a representações de ópera (ou mesmo de zarzuelas importadas de Espanha), já tinha começado a minha iniciação à teoria musical, e já não ia para os camarotes, mas para lugares mais baratos que ficavam ou em volta da plateia (um pouco como numa arena), ou mesmo lá no cimo de tudo (por cima dos camarotes); ficava de pé, apoiando-me na balaustrada e dominava todo o espaço, com a orquestra a alguns quinze ou vinte metros lá em baixo.
A acústica geral era bastante desfavorável, sobretudo quando se tratava de concertos sinfónicos, e o destino (ou mais precisamente: as leis da física que eu mal conhecia na altura) quis que, na quase totalidade dos casos, quanto mais caros eram os bilhetes piores eram as condições acústicas. De certas zonas da plateia, o auditor “privilegiado” ouvia cada obra mais três vezes do que uma. Já então se tentara fazer alguma coisa, suspendendo uns painéis acústicos, mas um espaço daqueles continuava a ser muito reverberante.
A verdade é que eu me instalava muitas vezes lá em cima, e que me acontecia, quando a posição me começava a incomodar, afastar-me uns quatro metros da balaustrada e sentar-me no chão com as costas encostadas à parede, onde terminava, por assim dizer, a grande abóbada que cobria todo o espaço. As condições acústicas eram aí excelentes, mesmo (e sobretudo?) quando já não conseguia ver a orquestra e tinha a viva impressão de me encontrar no interior de um espaço cuja percepção mudava naturalmente com a minha visão (visualização), enquanto que a audição permanecia constante. Mas esta mudança de uma espacialidade que eu (re)construía no meu espírito, não seria possível sem a continuidade temporal da audição. Foi pois a alguns vinte metros de distância, encostado à abóbada, que me lembro de ter escutado os dois últimos movimentos do Concerto para violino de Beethoven (ou seria de Brahms?) por David Oïstrakh, e de ter regressado à balaustrada pouco antes do fim da obra. Isto passava-se no Coliseu dos Recreios de Lisboa, há trinta e cinco anos atrás.
No dia 11 de Maio de 1991, o meu Quodlibet estreou-se lá.”
Mil novecentos e noventa e um foi também o ano em que Emmanuel fez 50 anos e, nessa ocasião, o seu amigo, o compositor e musicólogo Enrique Macias, organizou diversas manifestações na Fundação Serralves no Porto e convidou-o para as Jornadas de Música Contemporânea de Santiago de Compostela, onde foi estreada a peça Rubato, Registres et Résonances, que Emmanuel lhe dedicou post mortem. Esta obra, para flauta, clarinete e violino, baseia-se na Invenção em fá menor de J.-S. Bach. O título exprime os três métodos que geraram a metamorfose do original.
A partir de 1992, Emmanuel Nunes é convidado para dar aulas no CNSM de Paris, onde é professor de composição desde Outubro de 1993.
Escrita entre 1988 e 1991, Lichtung I, peça encomendada pelo Ircam, para violoncelo, trompa, clarinete, trombone, tuba, dois percussionistas, oito altifalantes e electrónica ao vivo (Ircam), foi estreada em Paris, no dia 13 de Fevereiro de 1992, pelo Ensemble Intercontemporain, dirigido por Mark Foster, com direcção informática de Eric Daubresse. Lichtung, em alemão, significa clareira, esclarecido e lichten, aparelhar, levantar (âncora) ou ainda, podar (uma árvore). Peter Szendy apresenta-a da seguinte forma:
“A obra é construída sobre estas “iluminações”. Excessos de informação, percebidos no limite como texturas: acumulações por vezes extremas que abrem caminho a esclarecimentos, a passagens de luz. Os objectos confundidos reaparecem a uma nova luz: distintos.
Temos por vezes muita dificuldade em orientarmo-nos no espaço. E isso vai ser Gelichtet: podado. De uma maneira temporal e de uma maneira espacial…”
A escrita instrumental e o programa informático são indissociáveis na sua elaboração. Para o compositor, tratava-se de não escrever uma partitura ‘para transformar’ a posteriori. Uma tentativa de sincronização máxima, para cada acontecimento, entre a agógica instrumental e o discurso do computador, de uma enorme complexidade rítmica.
‘Penso ter desenvolvido aquilo a que se poderia chamar um certo virtuosismo no interior dos programas. São por vezes extremamente virtuosos; por um segundo, tem-se por vezes toda uma polifonia de procedimentos. O tempo transforma-se completamente…’
E a escrita tende ‘para um limite quase inacessível: um tratamento individualizado de cada momento espacio-rítmico.’
Com efeito, o som de cada instrumento é enviado para o computador, que o submete a alterações e gera a sua espacialização através de um dos oito altifalantes dispostos na sala. Esta colocação no espaço é concebida de acordo com relações rítmicas: as trajectórias – a tecedura do local em redes de diversas periodicidades cruzadas – escrevem-se então segundo uma matriz que está, desde o início, no coração da Criação.
Atribuindo um invólucro – um perfil dinâmico – a esta matéria sonora que percorre o local, podemos mascarar ou fazer surgir essas relações rítmicas subjacentes. E o computador transforma-se num instrumento maravilhoso para ir para além do instrumental, rumo ao desconhecido do ritmo:
‘uma visão quase idealizada da concepção rítmica quer dizer para mim que regularidade e irregularidade são apenas uma questão de perspectiva…’ ” (As citações provêem de textos de apresentação redigidos por Emmanuel Nunes para as suas obras, e de entrevistas realizadas por Peter Szendy, a 15 e 20 de Janeiro de 1992, no Ircam.)
Nesse mesmo ano, para festejar os 500 anos dos Descobrimentos, o governo português propôs a Emmanuel Nunes uma encomenda com esta temática. Este hesitou durante muito tempo na escolha dos textos.
Finalmente, decidiu-se por Os Lusíadas de Luís de Camões, e essa peça veio a chamar-se Machina Mundi. Foi a primeira vez que aceitou compor uma obra cuja encomenda provinha de uma circunstância exterior aos seus próprios projectos. No entanto, este período mítico encontra um eco profundo na alma dos Portugueses e, numa entrevista aos Cahiers de Pandora, em Junho de 1981, à pergunta:
“Que sentido dá aos Descobrimentos Portugueses?”
Ele responde:
“É evidente que se reduzirmos o fenómeno dos descobrimentos a uma análise estritamente económica e social, não se pode evitar o problema da colonização, mas passamos ao lado do essencial! Com efeito, aquilo que é fascinante neste período, é essa dimensão de quase diáspora, simultânea com uma extraordinária sede de desconhecido, nessa aventura que não consigo explicar, mas com a qual me consigo identificar muito bem.
Estamos perante um paradoxo: hoje um Português encontra-se indo para o estrangeiro. A verdade é que, mesmo que apenas de um ponto de vista puramente geográfico, o povo português sente-se tentado a atirar-se ao mar. […] Estamos mais afastados da Europa por uma pulsão de procurar noutros lugares. Perante o desconhecido, sentimos a vertigem. Veja as conquistas do Oriente, por exemplo, segundo o que sei, nenhum outro povo, entre aqueles que partiram para além mar, retirou tão pouco proveito económico da situação. É um paradoxo incrível: quanto mais longe os Portugueses foram, mais pobres ficaram, até um ponto quase niilista.
Apesar das atrocidades coloniais, da procura desenfreada de riquezas, todo o lado colonialista bem conhecido, existe uma outra dimensão completamente diferente que é o próprio destino dos Portugueses, qualquer coisa como sonhar a sua pátria noutros lugares. Desde há algum tempo que muitos Portugueses sonham com o Portugal exterior. Alguém como Fernando Pessoa, entre algumas breves estadias em Inglaterra e em Paris, generaliza o longe através dos seus heterónimos: nunca está onde está, já que está em toda a parte. […]” Uma primeira versão de Machina Mundi (partes I, II, IV, V) foi estreada em Lisboa em Junho de 1992, e depois apresentada na Exposição Universal de Sevilha nesse mesmo Verão, com Pierre-Yves Artaud na flauta, Ernest Molinari no clarinete, Gérard Buquet na tuba, Sylvio Gualda nas percussões, e a orquestra e o coro Gulbenkian dirigidos por Farhad Mechkat. Um pouco mais tarde, em Novembro de 1992, a versão integral foi estreada no Festival de Outono de Paris, desta vez sob a direcção de Fabrice Bollon, com os mesmos intérpretes, à excepção da parte de percussão solo que foi confiada a Claire Talibart.
Este Festival de Outono foi dedicado a Emmanuel Nunes. Wandlungen (1986), Machina Mundi (1991-1992) e Quodlibet (1990-1991) foram aí apresentados em França pela primeira vez.
No número especial que o Le Monde dedicou ao Festival, em Setembro de 1992, Costin Cazaban escreve:
“Diz-se dele que é o herdeiro de Boulez e de Stockhausen. Poder-se-ia da mesma forma inscrevê-lo numa família mais vasta, que incluiria Mahler, Bach e Varèse. Mas todas estas afinidades não elucidam a personalidade de Emmanuel Nunes, a mistura singular de sensualidade e de espiritualidade na sua música, a acuidade de um pensamento analítico sempre aberto ao sentimento trágico. Em oito obras e três estreias francesas, Paris presta homenagem a este português de cinquenta e um anos, um dos faróis do nosso fim de século.”
Laurent Bayle, director do Ircam, no seu laudatio pronunciado a 23 de Outubro de 1996, na Universidade de Paris-VIII, por ocasião da atribuição do título de doutor honoris causa a Emmanuel Nunes, sublinha:
“É finalmente a partir de 1992 que o Festival de Outono de Paris, ao programar um ciclo de uma amplitude excepcional para um compositor da sua geração, lhe trará uma consagração internacional através daquilo que se tornará ainda uma cumplicidade de trabalho fiel entre uma directora artística, Joséphine Markovits, e o compositor.”
Nesta época, a série das Chessed vai enriquecer-se com duas outras peças, Chessed III, para quarteto de cordas, escrita em 1990-91, e estreada em Lisboa em 8 de Junho de 1992 pelo Quatuor Arditti, e Chessed IV, para quarteto de cordas e orquestra, escrita em 1992 e estreada em Junho de 1992, pelo Quatuor Arditti e a Orquestra Arturo Toscanini, em Bolonha.
Durante um concerto na Opéra de Paris, em 27 de Novembro de 1994, para o Festival de Outono, o Quatuor Arditti toca de novo esta peça, com a Orquestra Sinfónica da Rádio de Baden-Baden, Südwestfunk, dirigida por Jürg Wyttenbach, e Laurent Feneyrou apresenta-a nestes termos:
“Chessed IV e a luz nascente: CHESSED, quarta SEPHIRAH, quarta das dez esferas da manifestação divina, da Árvore da Vida, nos textos da Cabala, que Nunes despoja simbolicamente de toda a numerologia e de todo o hermetismo, significa bênção, graça, amor ou misericórdia de Deus. Depois de Tif’Ereth, a leitura dos escritos de Buber e de Scholem, e a experiência de uma violenta luz ofuscante descrita pelo Zohar, o ciclo das Chessed, mesmo não sendo a musicalização de um sistema filosófico, refere-se explicitamente aos textos sagrados hebraicos.
O ciclo Chessed inscreve-se ele próprio num ciclo ainda mais vasto, o de A Criação, onde as dispersões e arborescências rítmicas querem subtrair-se ao continuum caótico e informe que as precede: onde a composição já não resulta de um desenho, mas de um golpe de borracha; onde a obra já não é tachiste, mas mantém zonas de sombra, não enquanto ausência de luz, mas no sentido geométrico que lhe confere a refracção. “Do nevoeiro à luz, aos pontos de luz”, esclarece Nunes.
As diferentes realizações, as ramificações possíveis do material musical invadem o tecido da obra: mesmo no interior de Chessed IV (1992), nas suas diferentes secções, ressoa a anterioridade textual do quarteto de cordas Chessed III (1990-1991), onde a retoma de um estado inicial, primeiro, original, mas metamorfoseado, gera a alteração da aura. Da ambiguidade de um momento e das suas suspensões, nasce então um tempo de epifania luminosa, onde dedução e perspectivação do que já existe pintam as múltiplas relações possíveis do instrumentário.
O trágico da obra torna-se a expressão dum instante de decisão, duma crise que sem cessar renasce, duma solução que não pode ser senão talvez provisória, ou antes duma génese, duma arte orgânica, dum dar à luz, como testemunham os diferentes momentos do quarteto “solista” e a solidão efémera da orquestra.”
No Verão de 1995, Emmanuel Nunes é convidado para o Festival Internacional de Edimburgo, onde serão tocadas Versus I e Nachtmusik I, pelo Ensemble Contrechamps dirigido por Zsolt Nagy, assim como Quodlibet, pela BBC Scottish Symphony Orchestra, dirigida por Kasper de Roo e Emilio Pomárico.
A imprensa britânica foi muito elogiosa, e no The Scotsman, de 21 de Agosto de 1995, pode ler-se um longo artigo de Mary Miller:
“Um homem que pensa em busca da beleza. Um homem corajoso, duma inteligência e duma inventiva surpreendentes, a sua música emerge dum projecto profundo que, em vez de impor um qualquer controlo matemático desumanizante, permite a emergência dum mundo sonoro notável. Nunes absorveu toda a agitação, e até certo ponto, o mal-estar dos seus mestres de Darmstadt dos anos 60, mas incorporou-os na sua própria busca de beleza e numa rara necessidade de comunicar: não é um compositor que escreva para um clube de compositores ou de intelectuais. Este homem, sem qualquer sentido de compromisso, cria porque sente que tem que o fazer.”
E a edição de 4 de Setembro de 1995 relembra o que Brian Mcmaster, director do Festival Internacional de Edimburgo, afirmara sobre Nunes:
“É um compositor absolutamente maior. A sua música nunca antes tinha sido ouvida neste país.”
Na Velha Ópera de Frankfurt, em Dezembro de 1995, o Ensemble Modern dedicou dois dias de concertos a um cotejo das obras de Emmanuel Nunes com as de Anton Webern. Ao longo do primeiro dia, dedicado à música de câmara, foram tocadas alternadamente o Quinteto com piano, o Quarteto opus 22, o Trio de cordas opus 20 e os Cinco Canções Sacras opus 15 de Webern, e Versus III, Sonata a Tre, Aura e Versus I de Nunes. No segundo dia, ouviu-se a Passacaglia opus 1, as Cinco Peças opus 10 e as Seis Peças opus 6 para orquestra de Webern, e o concerto concluiu-se com Quodlibet.
Num importante texto de introdução à obra de Nunes, Joseph Häusler escreveu:
“Em Emmanuel Nunes, a grande constante é a sua elevada concepção da criação artística, no sentido de uma exteriorização que reflecte o espírito humano. A partir daí, a sua arte situa-se naturalmente numa corrente de transmissão que se desenvolve desde Bach, passando por Beethoven, Schubert e Mahler, até Boulez e Stockhausen. (…) Nestes últimos tempos, a arte de Emmanuel Nunes atingiu uma grande diversidade. Enriqueceu-se de uma nova etapa plena de verve e de mobilidade na formulação, de expressão e de colorido, duma faculdade soberana e extremamente virtuosa, tanto nos meios exteriores como nas possibilidades interiores. Por outras palavras, uma etapa plena duma dimensão de acção e de afirmação duma energia em permanente procura, que foi desde sempre o feito de Nunes.”
Desde o início de 1992, após a estreia de Lichtung I em Fevereiro, Emmanuel tinha começado por períodos intermitentes, mas com regularidade, o seu trabalho no Ircam sobre Lichtung II, cuja primeira parte foi estreada na Universidade de Lisboa, a 16 de Maio de 1996, pelo Ensemble Intercontemporain dirigido por Pascal Rophé. Alguns dias mais tarde, seria também apresentada em Paris, por ocasião dum ciclo dedicado a Emmnuel Nunes na Cité de la Musique, em Junho de 1996, num programa onde foram também tocadas Lichtung I, Wandlungen, e uma obra de João Rafael, Schattenspiel.
“No que se refere a Lichtung I, escreve Peter Szendy, a primeira parte de Lichtung II reflecte a cada instante uma espécie de preocupação hiperbólica do pormenor, tanto na partitura instrumental como na partitura informática: as prioridades, as hierarquias e as relações de causalidade entre o conjunto e o dispositivo electrónico tornam-se a maior parte das vezes indecidíveis. Esses cerca de onze minutos de música formam uma parte coerente da obra futura. O ‘virtuosismo informático’ de que Nunes falava a propósito de Lichtung I é aqui talvez mais sensível, devido ao virtuosismo instrumental que lhe faz eco.”
Desde 1988, Emmanuel Nunes nunca deixou de sublinhar a importância que dá ao seu trabalho de compositor no Ircam. No seu laudatio já anteriormente citado, Laurent Bayle opõe “a abordagem actual dos compositores, menos teóricos, menos inclinados à experimentação, exigindo resultados sonoros rápidos e facilmente manipuláveis, correndo o risco de uma certa exterioridade da técnica” à de Emmanuel, descrevendo-a da seguinte forma:
“É totalmente a contra-corrente destas tendências que se inscreve o percurso de Emmanuel Nunes no Ircam. […] Ele vem para desenvolver um projecto que passa pela vontade duma exploração do espaço correlacionada com todos os parâmetros da composição. […]”
Com uma obstinação e uma convicção na legitimidade do seu recurso à informática, dá-se a si próprio o
“tempo para se consagrar à aprendizagem de novos ambientes informáticos, de investir o instituto por períodos repetidos, durante meses, e de deixar o estúdio por vezes de madrugada, a fim de concluir aquilo que viria a ser Lichtung II”.
Esta peça é uma encomenda de Françoise e Jean-Philippe Billarant, no âmbito do seu apoio à criação musical no Ircam.
Lichtung I e II são dedicados a Vieira da Silva, cuja pintura Emmanuel admira profundamente e cujas reproduções de quadros ilustram a capa de diversos discos do compositor.
“Quando comecei a ser tocado em Paris, afirma numa entrevista com Brigitte Massin, ela veio algumas vezes comigo assistir aos concertos. E sei que ela gostava muito do meu trabalho. Fiz mal em ter ficado muito tempo sem a ver com frequência. Vi-a terrivelmente pouco. Por razões que não são razões. E o destino quis que ela não tenha sequer sabido que Lichtung lhe era dedicada. Lichtung não é em memória de Vieira: eu não sabia que ela ia morrer. Quanto a uma relação entre os nossos trabalhos, tudo o que posso dizer, é que no séc. XX, há talvez três pintores com os quais tive uma relação de aprendizagem: Kandinski, Paul Klee e Vieira da Silva. As suas obras tiveram uma enorme repercussão na minha maneira de pensar o gesto”. (Julho de 1992, citado no programa do Festival de Outono em Paris, 1992).
No Verão de 1996, no Festival de Edimburgo, Ruf foi tocado pela primeira vez na Grã-Bretanha, pela BBC Scottish Symphony Orchestra, sob a direcção de Emilio Pomárico, e pode-se ler no The Herald, pela pena entusiasta e um pouco exaltada de Michael Tumelty:
“[…] Nunca na minha vida ouvi nada semelhante. Era uma música vinda do espaço, ou dos recônditos de uma extraordinária imaginação, possuidora do seu próprio quadro de referências. A orquestra, dividida em duas partes iguais de cada lado do palco, lançava ao pequeno auditório a música abstracta mais violentamente dramática jamais concebida. […] Teatro instrumental puro e duro, que não se referia a nada senão a si próprio. Não se ligava a quase nada, excepto ao seu próprio contexto, excepto numa incursão no final desta longa peça, no território das últimas obras de Mahler. […]”
No Festival de Outono em Paris nesse ano de 1996, Minnesang é cantada pelo Ensemble Vocal Soli-Tutti dirigido por Denis Gautheyrie, e uma obra nova, encomendada pelo Festival, é estreada pelo Ensemble Contrechamps, sob a direcção de Emilio Pomárico. Trata-se de uma peça para 16 instrumentos e coro feminino, dedicada a Eric Daubresse, cujo título e texto em latim, Omnia mutentur, nihil interit (tudo muda, nada perece) é retirado das Metamorfoses de Ovídeo, (Livro XV, fixado e traduzido por Georges Lafaye, Les Belles Lettres, 1991). Como para Minnesang e Machina Mundi, cada verso retirado a Ovídeo guardou a sua forma original, embora a ordem das proposições tenha sido modificada pelo compositor, de tal forma que cada uma das seis partes da peça contém uma temática própria. Eis alguns extractos:
“Tudo muda, nada perece; o sopro vital circula, vai daqui para ali e apodera-se a seu bel-prazer das mais diversas criaturas; dos corpos dos animais passa para os dos homens, do nosso para os dos animais; mas não morre nunca; a cera maleável, que recebe do escultor novas marcas, que não fica nunca como era e muda sem cessar de forma, é sempre a mesma cera; assim a alma, digo-vos eu, é sempre a mesma, ainda que emigre para diferentes figuras. […] Nada conserva a sua aparência primitiva; a natureza, que sem cessar renova o universo, rejuvenesce umas formas com as outras. Nada perece, creiam-me, no mundo inteiro; mas tudo varia, tudo muda de aspecto; aquilo a que se chama nascer, é começar uma existência diferente da anterior; morrer, é terminá-la. […] Vedes a noite, depois de ter terminado o seu curso, inclinar-se para o dia e o astro radioso suceder à noite obscura. […] Ó tempo voraz, velhice ciumenta, destruís tudo; não há nada que, uma vez atacado pelos dentes da idade, não seja em seguida progressivamente consumido pela morte lenta que lhe fazeis suportar.”
Nesse ano, Emmanuel Nunes volta a viver em França, perto de Paris. Durante o ano de 1997, mergulha na obra de Kandinski, e num trabalho intitulado “À l’écoute des écrits de Wassily Kandinsky” (“À escuta dos escritos de Vassili Kandinski”), onde estuda a problemática duma constante entre as diferentes artes, a importância dos elementos visuais no interior dum espaço cénico, os aspectos da sua linguagem pictórica tal como o pintor os tenta sistematizar, assim como as palavras retiradas de forma recorrente ao mundo sonoro como referências plásticas.
Compõe também Musivus, peça para orquestra, encomendada para a Exposição Universal de 98 e estreada em Lisboa, a 8 de Maio desse ano, pela Orquestra Gulbenkian, sob a direcção de Emilio Pomárico. O título da obra é uma palavra latina que significa “obra em mosaico”, e se nos entretivermos a seguir os percursos de sentido desde a palavra grega original, ficaremos muito próximos da elaboração imaginária e lógica da peça, já que a musa grega deu certamente a música, mas também a palavra musivum, que em latim medieval se transformou em musaicum, quer dizer a obra das musas, antes de ser uma obra de arte feita de peças trazidas de materiais diversos e de diversas cores, o mosaico. Assim, Musivus é uma música colorida, composta em mosaico. No programa do Festival Présences 2000, Alain Bioteau descreve-a nos seguintes termos:
“Cada elemento atómico de mosaico é orientado, pelas suas qualidades intrínsecas, de forma particular e funcional em relação aos outros elementos e à figuração geral. Este princípio deve integrar-se na própria composição. Segundo confessa Emmanuel Nunes, este desafio levou-o mais longe do que ele pensava, num jogo combinatório muito rico e na descoberta de novos territórios. Na verdade, este princípio de escrita não é senão o resultado de uma tendência já presente em numerosas obras: Lichtung I, Machina Mundi, Quodlibet… Mas não se pode falar verdadeiramente em mosaico senão com Lichtung II e Musivus. O compositor elabora mosaicos como entidades que têm uma lógica própria. Na origem, contêm todas um mesmo número de divisões que representam um quadro, mas têm, no entanto, durações reais muito contrastadas. A disposição da orquestra participa também desta ideia de mosaico. Foram criados numerosos subgrupos, dispostos em quatro níveis, de maneira não convencional, como blocos de cores tímbricas e variadas onde a simetria desempenha um papel. Esta disposição visa directamente permitir ao ouvinte uma audição fisicamente calibrada.”
Será apenas a partir de 1997 que a obra de Emmanuel Nunes encontra um verdadeiro eco na Holanda e na Bélgica, onde diversos programas lhe são dedicados. Assim, em Maio de 1997, o Ensemble Ictus apresenta um concerto-retrato em Bruxelas, onde são tocados Nachtmusik I, Versus III e Einspielung II. No ano seguinte, em Outubro de 1998, André Hebbelinck convida Emmanuel Nunes a ir a Amesterdão, onde Quodlibet é apresentado no Concertgebouw, pela Orquestra Filarmónica da Rádio de Amesterdão, sob a direcção de Lawrence Renes e de Micha Hamel. Mais tarde, a 6 de Março de 1999, de novo no Concertgebouw, Wandlungen é interpretado pelo Nieuw Ensemble, dirigido por Ed Spanjaard.
Esse mês de Março de 1999 foi rico em concertos, já que o Festival Ars Musica permitiu escutar em Bruxelas, na noite de abertura, Ruf seguido de A Canção da Terra de Gustave Mahler, pela Orquestra Filarmónica de Liège, dirigida por Michaël Zilm. Estas duas obras já tinha sido reunidas num mesmo programa dezassete anos antes, na Radio-France. Nos dias seguintes, foram apresentadas Musik der Frühe, pelo Ensemble Ictus dirigido por Mark Foster, Esquisses e Chessed III pelo Quatuor Arditti, Einspielung III, pelo seu intérprete favorito, o violetista Christophe Desjardins, e Lichtung I, pelo Ensemble Champ d’Action, também dirigido por Mark Foster. Franck Madlener, director artístico do Festival, apresenta desta forma os concertos:
“A obra de Emmanuel Nunes, áspera, violenta e tão pouco lisa, exaure todas as normas da economia musical. A obsessão da espacialização de Nunes, constitutiva da sua escrita, esta ‘poiética da distância’, assim designada pelo compositor, manifesta-se tanto nas obras puramente instrumentais, como naquelas em que o pensamento musical se contrapõe ao raciocínio informático. O poder compulsivo, obstinado dos megálitos de Nunes abre brechas fulgurantes no espaço cerrado da textura. A abertura soa então como um sinal do longínquo e uma dádiva da distância.”
Ainda em Basileia, Quodlibet inaugura a reabertura da catedral a 24 de Março de 1999, interpretada pela Basel Sinfonietta, o Ensemble Modern e o Pulse Percussion Ensemble, dirigidos por Kasper de Roo e Jürg Henneberger.
Em 1999, Emmanuel Nunes recebe o prémio do Conselho Internacional da Música conferido pela UNESCO e, nessa ocasião, em Novembro, tem lugar um concerto em Aix-la-Chapelle onde os músicos do Ensemble Modern tocam Versus I, Aura, Sonata a Tre e Versus III, assim como o Trio de cordas opus 20 de Webern.
Finalmente, depois de uma ausência de uma dezena de anos da programação da Radio France, três obras de Emmanuel Nunes, Esquisses, Chessed III e Musivus, em estreia francesa, foram programadas por Alain Moëne para o Festival Présences 2000.
A partir da Primavera de 1999, o compositor voltou à partitura de Lichtung II e ao longo do trabalho de programação informática que deverá culminar a síntese dos dois domínios, instrumental e electrónico, tal como ele a tem vindo a aprofundar nos últimos doze anos. A obra foi estreada no Théâtre du Rond-Point, em Paris em Junho de 2000, no âmbito do Festival Agora. Nesse concerto, Lichtung I e II foram interpretados pelo Ensemble Intercontemporain, dirigido por Jonathan Nott, sendo a direcção informática assegurada por Eric Daubresse e Ipke Starke. Estas duas obras serão apresentadas em Lisboa pelos mesmos intérpretes, em Maio de 2001 na Fundação Gulbenkian.
Emmanuel Nunes foi o convidado principal do Tage für Neue Musik de Zurich 2000, onde foram interpretadas oito obras que reflectem trinta anos do seu trabalho de compositor. Um programa semelhante foi apresentado em Dezembro de 2000, na Fundação Serralves no Porto, pelo Ensemble Ictus, dirigido por Peter Rundel. Foi durante essa semana de concertos no Porto que o compositor teve conhecimento que acabava de lhe ter sido atribuído o Prémio Pessoa.
HELENE BOREL
Tradução de Ana Sofia Sampaio
HELENE BOREL [Após concluir estudos de letras e de psicologia (psicologia clínica e psicanálise), Hélène Borel ensinou em diversos hospitais psiquiátricos, e dirigiu durante sete anos a escola especial do serviço de psiquiatria infanto-juvenil de Salpêtrière. Escreveu uma tese sobre o futuro das crianças psicóticas e desenvolveu um trabalho de psicoterapia através da escrita. Pintora, Hélène Borel pratica e ensina actividades relacionadas simultaneamente com o teatro e o artesanato (fatos, marionetas, máscaras e cenários).]
Teatro Nacional de São Carlos, Fundação Calouste Gulenkian, Casa da Música, IRCAM
Teatro Nacional de São Carlos
Lisboa
Portugal
Remix Ensemble, Orquestra Sinfónica Portuguesa, Coro do Teatro Nacional de São Carlos
Silja Schindler, Chelsey Schill, Graciela Araya, Andrew Watts, Musa Duke Nkuna, Philip Sheffield, Matthias Hoelle, Dieter Schweikart, Luís Rodrigues (voz),
Joana Barrios, Anna Katharina Rusche, Beate-Christa Kopp, Tilo Wagner, Richard Jaeckle (actores)
Eric Daubresse (sonoplastia)
Karoline Gruber (encenação)
Peter Rundel (direcção)
Observações
Cenografia: Roy Spahn
Coreografia: Amanda Miller
Figurinos: Mechthild Seipel
Desenho de luz: Hans Toelstede
Cenografia: Roy Spahn
Coreografia: Amanda Miller
Figurinos: Mechthild Seipel
Desenho de luz: Hans Toelstede
Teatro Nacional de São Carlos, Fundação Calouste Gulenkian, Casa da Música, IRCAM
Teatro Nacional de São Carlos
Lisboa
Portugal
Remix Ensemble, Orquestra Sinfónica Portuguesa, Coro do Teatro Nacional de São Carlos
Silja Schindler, Chelsey Schill, Graciela Araya, Andrew Watts, Musa Duke Nkuna, Philip Sheffield, Matthias Hoelle, Dieter Schweikart, Luís Rodrigues (voz),
Joana Barrios, Anna Katharina Rusche, Beate-Christa Kopp, Tilo Wagner, Richard Jaeckle (actores)
Eric Daubresse (sonoplastia)
Karoline Gruber (encenação)
Peter Rundel (direcção)
Observações
Cenografia: Roy Spahn
Coreografia: Amanda Miller
Figurinos: Mechthild Seipel
Desenho de luz: Hans Toelstede
Cenografia: Roy Spahn
Coreografia: Amanda Miller
Figurinos: Mechthild Seipel
Desenho de luz: Hans Toelstede
Teatro Nacional de São Carlos, Fundação Calouste Gulenkian, Casa da Música, IRCAM
Teatro Nacional de São Carlos
Lisboa
Portugal
Remix Ensemble, Orquestra Sinfónica Portuguesa, Coro do Teatro Nacional de São Carlos
Silja Schindler, Chelsey Schill, Graciela Araya, Andrew Watts, Musa Duke Nkuna, Philip Sheffield, Matthias Hoelle, Dieter Schweikart, Luís Rodrigues (voz),
Joana Barrios, Anna Katharina Rusche, Beate-Christa Kopp, Tilo Wagner, Richard Jaeckle (actores)
Eric Daubresse (sonoplastia)
Karoline Gruber (encenação)
Peter Rundel (direcção)
Observações
Cenografia: Roy Spahn
Coreografia: Amanda Miller
Figurinos: Mechthild Seipel
Desenho de luz: Hans Toelstede
Cenografia: Roy Spahn
Coreografia: Amanda Miller
Figurinos: Mechthild Seipel
Desenho de luz: Hans Toelstede
Remix Ensemble:
José F. Silva (corne inglês)
Vítor J. Pereira (clarinete baixo)
Simon Cowen (trombone)
Trevor McTait (viola)
Oliver Parr (violoncelo)
Eric Daubresse (assistente musical)
Peter Rundel (direcção)
Fréderic Stochl (contrabaixo), Sylvio Gualda (percussão), André Gantier (trompa), Ernest Rombout (oboé), Guy Comentale (violino), Joseph Burnam (trombone)
Ensemble de Percussion "Les Pléiades"
Orquestra Filarmónica da Silésia (Katowice)
Arturo Tamayo, Mark Foster (direcção)
Maurice Bourgue (oboé), André Gantier (trompa), Michel Becket (trombone), Sylvio Gualda (percussão), Régis Pasquier (violino), Frédéric Stochl (contrabaixo)
Orchestre National de France
Leif Segerstam, Arturo Tamayo (direcção)
Arte Eletroacústica - Festival Música Viva 2012 – “Dar Voz!” (3ª Parte) | 2º Fórum Internacional para Jovens Compositores do Sond'Ar-te Electric Ensemble Arte Eletroacústica